sábado, outubro 31, 2009

Uma viagem de cliché


Apanhei hoje um táxi em Alfornelos (*), mas o que me saiu na rifa foi um cliché. Unhaca do mínimo protuberante, camisa arejada na peitaça peluda (nada de mariquices à jogador de bola), e a intolerável mania de meter conversa com o passageiro. Só lhe faltava o bigode e o Salazar-a-cada-esquina. E claro, lampião. No curto trajecto entre Alfornelos e o Campo Grande, fiquei a conhecer muitas das suas peripécias no Estádio do Galinheiro. Eu ia grunhindo monossílabos enquanto entornava os olhos na janela, a rezar aos meus deuses agnósticos para a viagem terminar depressa nem que fosse por causa de um furo ou de um buraco que se abrisse e nos engolisse. Mas o pior, senhores, o pior foi quando percebi que me tomou por lampião, e desatou a falar mal da "lagartagem" e dos "tripeiros", com piscadelas cúmplices pelo retrovisor, a que eu respondia com o ar mais agoniado que me foi possível. Ainda tentei ostentar assim uma pose intelectual e digna, de modo a desfazer o equívoco, o que no meu caso é quase tão difícil como armar-me em másculo marialva. Mas nada. À medida que íamos circulando pela 2.ª dita cuja a confiança ia aumentando numa proporção que acompanhava a fúria com que eu vomitava os olhos pela janela. Ainda pensei em desfazer o equívoco assumindo-me, mas receei represálias, e tinha mesmo de apanhar o autocarro - ia ao lançamento de um livro, coisa tremendamente intelectual, mas que pelos vistos não transpirou o suficiente. Quando finalmente aterrámos diante do Estádio de Alvalade, rosnei um boatardecomlicença, enfiei-me no autocarro, fui ao lançamento do coiso, e agora estou há horas numa angústia tremenda, a ir regularmente prantar-me diante do espelho à procura de qualquer coisa, qualquer sinal, sei lá, qualquer trejeito (será do meu ar efeminado?! Eu até pus muita colónia hoje.) que tenha levado o taxista a nem sequer hesitar em me tomar por lampião.



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(*) Normalmente ando a pé ou de transportes públicos, o que me permitiu perder quatro dezenas de quilos em poucos anos, e ter análises "de fazer inveja" (médico de família dixit). Também me permite correr 10km dia sim dia não, sem grandes dramas, coisa que parece que deixa rapazes profissionais com metade da minha idade fora de combate. Mas hoje arriscava-me a perder o autocarro e assim chegar atrasado a um compromisso.

La Iffanta Coronada

La Iffanta
Coronada.
Por El Rey Don Pedro,
Doña Ines de Castro.

Canto Primeiro

En que se cuenta la venida de doña Ines de Castro al reino de Portugal, se describe su rara hermosura en perfecciones corporales, y se trata de sus amores con el Iffante don Pedro, y su prision, con poeticas ficciones de general sentimiento por ella.

No canto los fingidos caualleros
Que la pluma chymerica lleuanta,
No Caesares Romanos verdaderos
Cuya fama notable al mundo espanta.

No vanos argonautas brauos fieros
Que la vana antiguedad sublima y canta,
No cursos de los cielos presurozos
Ni los siete planetas luminozos.


D. João Soares de Alarcão, La Iffanta Coronada. Por El Rey Don Pedro, Doña Ines de Castro, 1603
Edição de Rui Prudêncio

Versejadores seiscentistas

Retirado da belíssima edição de Rui Prudêncio da Iffanta Coronada de D. Soares de Alarcão (1603)


Soneto

Se a vos que a tuba entoa toa
Em Torres Vedras donde exclama & clama,
(Senhor dom Ioão Soares que a fama ama)
Epor louuar vossa pessoa soa

Se de Lisboa vos pregoa a Goa,
Onde do sol ardente inflama a flama,
Colhendo as flores que derrama a rama,
Ao tom que o mar & o ar atroa, & troa,

Das mesmas flores vos componha, & ponha
Com louro, & era em que verdura dura,
Capellas bellas no cabello bello.

E qualquer Musa que procura & cura
Louuaruos, cesse, pois bisonha sonha
Como eu debalde me desuello, & vello.

Nuno de Pina

res arabicae . I

Nos jornais locais aparecem os anúncios às festas das adiafas. É mais um fóssil linguístico do nosso passado arábico. A palavra, que se refere às festas rurais do fim das vindimas, vem do árabe aḍ-ḍiyâfa (*) [الضيافة], que significa "hospitalidade", "recepção hospitaleira". Provém do radical ḍâfa [ضاف], com o sentido de convidar, juntar, anexar.


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(*) a transcrição do dicionário Houaiss (edição Portugal) está errada.

Pornographia

Regresso ao tema do preço dos livros em Portugal. Que uma tradução portuguesa possa custar o triplo, às vezes o quádruplo de um original ou mesmo de uma tradução em outra língua, isso já me parece um escândalo. Engulo com dificuldade o argumento de que as tiragens são mais baixas, e por isso encarece o produto: além de as boas edições de bolso que recentemente começaram a sair o desmentirem, também me parece que se os livros fossem mais baratos haveria mais procura, e as tiragens seriam necessariamente maiores. Eu falo por mim: da nova literatura portuguesa só compro aquilo que sei à partida que tem qualidade. Não arrisco nomes novos, não sou rico.

Engulo, dizia, com dificuldade o argumento das tiragens baixas. Agora o que eu não consigo de maneira nenhuma entender, a não ser como ganância e chico-espertismo, é que a mesma edição custe em Portugal o dobro do que se mandar vir do país de origem. Refiro-me ao mais recente vencedor do Booker, Wolf Hall, da Hilary Mantel. Vi a edição original, de capa dura, à venda na Almedina do Saldanha por cerca de 20€. Na Amazon.co.uk está à venda a mesmíssima edição por £8,49 - ou seja, mais coisa menos coisa, 9,5€. Repito: a mesmíssima edição. Mesmo com os portes de envio, sair-me-á sempre mais barato mandar vir de Inglaterra a mesmíssima edição. Ora toma.

quinta-feira, outubro 29, 2009

(Ana María S. Tarrío)

«João Rodrigues de Sá de Meneses (1486/87-1579), alcaide-mor do Porto, celebrado pela geração camoniana como pai fundador da nova aristocracia das letras, prefigurou intensamente a dualidade renascentista da pena e da espada. Acusado quatro vezes perante o tribunal da Inquisição por comportamentos heréticos e por práticas de sodomia, representava a facção intelectual mais ousada da nobreza manuelina, marcada pelo impacte da formação humanística italiana e em breve incómoda, no período de rigor doutrinário contra-reformista (...). Elaborou as composições poéticas mais vanguardistas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende de 1516, renovando a medida velha com novos conceitos e princípios humanísticos antes da renovação métrica de Bernardim Ribeiro e Francisco de Sá de Miranda, seu primo. Além de várias composições poéticas neolatinas, redigiu a singular monografia 'De Platano', que aqui se publica. Nesta obra rara da literatura renascentista europeia a imagética neoplatónica da natureza aviva-se para produzir um discurso nacional que procura superar a condição de periferia cultural lusitana relativamente à hegemonia italiana.»

Ana María S. Tarrío, Paisagem e Erudição no Humanismo Português. João Rodrigues de Sá de Meneses. De Platano (1527-1537). Estudo introdutório, edição crítica, tradução e notas. Gulbenkian, Lisboa, 2009

domingo, outubro 25, 2009

Da Serra da Estrela e do mar que lhe deixa destroços



«Destas [montanhas] a mais notável é a que se chama da Estrela, por olhar de perto os astros. Está guardada por um lago e pelas trevas dos bosques. A água daquele, que é doce, comunica com o Oceano, ainda que esteja afastado vinte léguas. A comunhão do lago e do Oceano revela-se pelo movimento diário das marés, como regista Texeira, a partir do testemunho dos habitantes locais. As tempestades que atormentam os mares agitam e alteram as ondas do lago, que muitas vezes presenteiam com destroços de barcos, arremessados através de aberturas subterrâneas, e aos habitantes [presenteiam] com espanto.»

J. Caramuel Lobkowitz, Philippus prudens Caroli V. Imp. Filius Lusitaniae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitimus rex demonstratus, Antuerpia, 1639 (fol. 3r)

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«
So that here, in the real living experience of living men, the prodigies related in old times of the inland Strello mountain in Portugal (near whose top there was said to be a lake in which the wrecks of ships floated up to the surface);»

Melville, Moby Dick, cap. 41

Para Kabul, e em força!

Visto nas notícias da RTP.

Um militar diz que as missões internacionais portuguesas na Bósnia, Afeganistão e Kosovo são o principal factor de atracção para recrutamento de voluntários. E de facto é difícil encontrar actividade mais estimulante para a juventude portuguesa do que perseguir taliban nas montanhas afegãs. Já sem falar dos banhos de urânio empobrecido nos Balcãs.

quinta-feira, outubro 22, 2009

Quietude


«Cuando cesaron de patearlo permanecieron unos segundos sumidos en la quietud más extraña de sus vidas. Era como si, por fin, hubieran hecho el ménage à trois con el que tanto habían fantasiado.

Pelletier se sentía como si se hubiera corrido. Lo mismo, con algunas diferencias y matices, Espinoza. Norton, que los miraba sin verlos en medio de la oscuridad, parecía haber experimentado un orgasmo múltiple.»

Roberto Bolaño, 2666

segunda-feira, outubro 19, 2009

Vozes de burro não chegam ao Céu

O facto de ser ateu; o facto de, ao contrário da generalidade dos cristãos católicos, ter lido a Bíblia; o facto de em muitíssimas coisas estar em total e irreconciliável desacordo com o Cristianismo; tudo isto dá-me, espero, alguma autoridade para poder dizer que as afirmações do senhor Saramago sobre a Bíblia revelam uma de três coisas (ou mesmo todas as três):
  1. que ensandeceu, e além disso nunca leu de facto a Bíblia (ou se leu, leu mal), limitando-se a fazer eco das cavalidades dos ateus radicais;
  2. que ensandeceu, e procura fazer polémica com intenção de publicidade gratuita, mediante ataques alarves a uma instituição que, com todos os seus defeitos, merece o respeito de qualquer pessoa com um mínimo de boa formação cívica;
  3. que ensandeceu, simplesmente.

É que se é certo que, sobretudo o Antigo Testamento, tem de facto partes de uma violência chocante aos olhos da nossa cultura greco-romana fortemente temperada pela judaico-cristã, a verdade é que não se pode tomar a parte pelo todo, nem se pode, sobretudo, desligá-las do seu contexto. Longe de ser um "manual de maus costumes", é na verdade um dos pilares da nossa cultura e da nossa civilização, para o bem e para o mal.

Não reconhecer isto revela, no mínimo, ignorância. Embora no caso presente me pareça que outras razões bem mais lamentáveis - é que a ignorância não é um defeito, pode mesmo ser a maior das qualidades, quando a reconhecemos e a tentamos colmatar. Já a provocação e a afronta com efeitos publicitários, essas parecem-me sem remédio.

Quanto à Igreja, instituição à qual não tenho, repito, qualquer ligação e pela qual, insisto, não me move nenhuma simpatia especial (nem antipatia), espero que não morda o anzol insidiosamente lançado pelo senhor Saramago, e que leve à letra o conhecido dito que dá título a este texto.


acrescento: a comunidade judaica já reagiu. Como a gente costuma dizer nas discussões geek (sim, eu sou um bocadinho, e assumo-o), "please, don't feed the troll".

sábado, outubro 03, 2009

Garanhão

A vizinha de baixo cumprimentou-me com um sorriso malandro. Talvez lhe devesse ter dito que é só a nova máquina de lavar roupa que faz demasiado barulho ao bater no armário durante a centrifugação.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Contas


Mandei vir da Amazon.co.uk a tradução inglesa do primeiro volume da trilogia do Stieg Larsson (espero não me arrepender...)*. O total da encomenda foi £9,42. Ou seja, em moeda de gente, 10,34€, mais coisa menos coisa. Já incluindo despesas de envio, porque o livro mesmo só custa £4,19 (4,60€). A tradução portuguesa custa, na Wook, 17,55€. Ainda sem os portes de envio.

Portanto, a tradução portuguesa custa o quádruplo da tradução inglesa. Eu acredito que haja uma razão aceitável para isto, mas enquanto não souber qual é, continuarei a só comprar em Portugal livros de autores portugueses.
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* arrependi-me.