terça-feira, dezembro 28, 2010

Uma antena, por favor

A propósito da polémica que estalou por causa do ataque à liberdade de expressão por parte da ensitel, empresa que, depois disto, nunca verá um cêntimo meu, lembrei-me de um caso que aconteceu comigo há uns anos.

Tendo comprado um Alcatel numa loja TMN, na altura em que os telemóveis serviam para telefonar e tinham antenas externas, a dita cuja antena um belo dia deu-lhe para se descolar e cair. Dirigi-me à loja da TMN que então havia na Av. da República (Lisboa), e pedi que me pusessem uma antena nova. Dispus-me logo a pagar o arranjo, visto que imaginei que a garantia não cobrisse um acidente deste tipo. Que sim senhor, que me prantavam já uma antena nova no bicho, que esperasse só uns minutos.

Passados os prometidos minutos, voltou-me o telemóvel sem antena. A menina, penalizada, disse-me que os técnicos tinham achado "humidades" no telemóvel, e que por isso não podiam atarrachar a antena nova. Perplexo e sem entender o que tinha uma cousa que ver com a outra, protestei. Que era política da empresa, e que o próprio fabricante proibia terminantemente qualquer intervenção em telemóveis "com humidades". Vomitei a minha ira no livro de reclamações, mas não desisti.

Dirigi-me então à fábrica da Alcatel, nos arredores de Lisboa, e pedi pelamordedeus que me pespegassem a maldita antena no telemóvel. O rapaz que me atendeu não percebeu a minha ânsia, nem quis saber de "humidades". Pegou numa antena nova, e, à minha frente, lá a prantou no couso. Perguntei quanto era, respondeu que não era nada e foi à sua vida.

Resolvi fazer nova queixa da TMN, agora armado com esta inesperada ajuda da Alcatel. Fui ao Instituto do Consumidor, e expus o caso. Passadas algumas semanas, veio a resposta da TMN. Diziam que não havia prova de que na Alcatel me tivessem prantado efectivamente a antena, e que por isso partiam do princípio de que não tinha acontecido o que eu narrara. Ou seja, chamavam-me mentiroso.

Ainda pensei levar a cousa mais adiante. Mas depois lembrei-me de que, como o rapaz da Alcatel não me tinha cobrado nada, a verdade é que realmente eu não tinha provas do que dizia. Portanto amochei. Mas nunca mais comprei nada em lojas TMN. Já lá vão uns bons 10 anos.

sábado, dezembro 18, 2010

Perguntas difíceis

A Carolina (5 anos) olhou para a minha cama vazia e perguntou se eu dormia sozinho. Eu respondi que sim, e ele atacou de novo. Quis saber se eu não me sentia sozinho. Estive para responder que dava todos os dias graças aos deuses, ao levantar e ao deitar e durante o resto do dia, pela bênção que é viver sozinho, mas preferi um politicamente correcto, mesmo se mentiroso, "às vezes".

O Manuel (4 anos) perguntou se o Natal estava a chegar. Eu disse que sim. Ele quis então saber porquê. Eu respondi que era porque o tempo passa. Ele perguntou porque é que o tempo passa. Respondi que é porque o Sol se põe e se levanta todos os dias. Receei um novo "porquê", mas felizmente um pombo a voar demasiado baixo desviou-lhe a atenção.

sábado, dezembro 04, 2010

Dos futebolistas cansados

Reitero a minha perplexidade. Um jogador de futebol profissional português (só é assim em Portugal) queixa-se de cansaço e de falta de tempo de recuperação quando faz jogos 2 vezes por semana. Os jornais desportivos costumavam fazer a estatística da distância percorrida por jogo. Os jogadores que correm mais (mas só mesmo esses) fazem 9 a 10 km por jogo.

Ora, 9 a 10 km corro eu pelo menos 3 vezes por semana. Esta, por exemplo, foram cerca de 8 na Segunda; cerca de 9 na Quarta; 12 ontem; 15 hoje.  A média é entre os 9,5 e os 10 km/h. Cansaço? Bom, na meia hora seguinte.

Admito, concedo, há muitas diferenças entre um futebolista profissional e eu. Não vou escudar-me atrás disso. 

O futebolista profissional anda na casa dos 20, eu ando já com um pé nos 40. 

O futebolista profissional é profissional, vive só para aquilo, tem por obrigação contratual manter a forma. Eu sou sedentário, vou correr quando arranjo um bocadinho, e só comecei nestas vidas há uns 5 anos.

O futebolista profissional é acompanhado por especialistas, nutricionistas, é monitorizado, o esforço é todo ele doseado e prescrito. Eu vou correr com uns ténis da feira e uns calções e uma camisola das mais baratas.

O futebolista profissional tem massagistas e jacuzzis para relaxar. Eu massajo as costas só aonde chego com a minha própria mão, e é mais para coçar alguma borbulha incómoda. E jacuzzi só quando a boca do chuveiro se desenrosca sem eu dar por isso e levo com um jacto mais forte do que estava à espera.

O futebolista profissional tem uma dieta rica e energética. Eu vivo de bróculos cozidos e pescada cozida e alguma fruta e dois pãezinhos por dia, porque mais do que isso e a balança dispara.

Ainda assim estes rapazolas com metade da minha idade, com dietas energéticas, com exercício físico prescrito, com uma condição física invejável, ainda assim queixam-se de cansaço quando jogam duas vezes por semana e correm, no total, mais ou menos o mesmo que eu corri há bocadito, e já estou pronto para outra.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Das bibliocousas

Na livraria uma senhora encomenda um livro porque, diz, apesar de já o ter, não o encontra nas estantes. Já estive mais longe disso. Quero dizer: já cheguei à fase de não encontrar. Só falta chegar à de comprar outra vez os já muitos que sei que tenho mas já não sei em que estante. Por outro lado, já tenho encontrado nas minhas estantes, quando me dá para as arrumar, muita cousa de que já não me lembrava que tinha, outras que podia jurar que não tinha.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Soubesse a espanholada a choldra em que isto se tornaria e não teria sido preciso andar depois à bulha quase 30 anos

RELAÇÃO DE TUDO O QUE PASSOU NA FELICE ACLAMAÇÃO DO MUI ALTO E MUI PODEROSO REI DOM JOÃO O IV
(1641)

Sexta-feira, depois de estar prevenido tudo quanto era necessário para a defensa da vida − siguindo o parecer de D. Miguel de Almeida − se confessaram todos, e se prepararam, pedindo a muitos relegiosos orações e missas, e dispondo-se como quem havia de entrar em um conflito, em um transe e em um perigo tão atroz, tão horrível, tão estupendo e tão alheio do que até agora viram quantas repúblicas hove no Universo. À tarde deste mesmo dia foram alguns dos mais autorizados do Povo a manifestar aos fidalgos que estavam com grande zelo e vigilância prevenidos para o sábado seguinte. Alegraram-se os fidalgos vendo que na ocasião era certo que o Povo os havia de siguir.

Amanheceu o desejado dia, e além de outras muitas circunstâncias que nele houve para se presumir com sólido fundamento que foi este impulso disposto e governado pela vontade divina, se considerou grande mistério em repetir então a Igreja aquelas palavras da Epístola Ad Romanos, cap.13, quando o glorioso apóstolo S. Paulo diz que é já hora de despertarmos, porque está a nossa salvação mais perto do que presumimos:

Fratres hora est iam nos de somno surgere, nunc enim propior est nostra salus, quam cum credidimus.

Que parecia que o mesmo Deus nos estava dizendo que era já chegada aquela felice hora que ele prometera a el-rei D. Afonso Henriques. Deu-se enfim o ponto para as nove horas da menhã, e deu-se ordem a todos para que, poucos a poucos, por vários caminhos, se ajuntassem no terreiro do Paço, o que se fez com recato e boa disposição, que uns em coches, outros a cavalo, outros a pé se dividiram em troços por todo aquele espaço que há desd’ o Arco dos Pregos até o Arco do Ouro. Andava já o segredo tão público, que o dia de antes ũa criada de D. Antão de Almada mandou um negro a casa de certa senhora cujo marido estava persiguido e preso por Miguel de Vasconcelos, e despois de estar o negro no pátio veio ela a ũa veranda e com muito desenfado lhe advertiu em alta e inteligível voz que dixesse àquela senhora que se não agastasse, que amenhã havia de ir o senhor D. Antão de Almada com outros fidalgos a matar ao secretário e a soltar ao senhor seu marido. E D. António Mascarenhas, encontrando no claustro de São Francisco de Enxobregas a Miguel de Vasconcelos, passou por ele sem lhe tirar o chapéu, e perguntando-lhe alguns fidalgos e alguns religiosos do mesmo convento porque não falava ao secretário, respondeu que entendia que era espécie de treição fazer cortesia a um homem a quem ele sabia de certo que havia de tirar a vida.

Também o doutor João Pinto Ribeiro, quando esta prodigiosa menhã veio de sua casa à porta da capela a esperar que se juntassem os fidalgos, encontrou no caminho um dos amigos a quem ele havia convidado sem lhe dizer o para quê, o qual, como andava desejoso de saber este segredo, lhe rogou que lhe dixesse aonde iam, e ele lhe respondeu: «− Não é nada; imos aqui abaxo até a sala dos tudescos a tirar um rei e pôr outro, e logo nos tornamos para casa.». Mas nenhũa cousa houve de tanto assombro − em razão de andar o segredo já na praça − como haver, naquela mesma hora em que o conflito estava próximo, quem − sem saber nada do que se preparava − entrou na Secretaria e avisou a Miguel de Vasconcelos, amoestando-o que se saísse lá por aquela porta do forte que olha para o mar, e que sem demora se metesse na sua gôndola e se passasse à outra banda. Porém já neste tempo, depois de estarem unidos e resolutos, pouco importava que o segredo se não observasse com todo o rigor, porque uma vez chegado o intento àqueles termos, não podia deixar de ter efeito, quanto mais que, se era decreto de Deus, que Portugal restaurasse a perdida liberdade, que descuido, que estorvo ou que embaraço podia haver que lhe fizesse impedimento?

Neste comenos deu o relógio do Paço nove horas, e como quando o fogo de ũa mina atea na pólvora e saem num mesmo instante por várias aberturas da terra − em cópia larga, com medonho ímpeto − mil raios e mil despedaçados e abrasadores mármores, assi feros, assi terríveis e assi furiosos saíram num mesmo tempo alguns fidalgos dos coches, e logo foram em seu siguimento com a mesma deliberação os mais que, a cavalo, ou a pé, vinham para aquele efeito. Subiram todos intrépidos por ũa e outra escada do Paço, já com as armas prontas, e dispostos para ver a cara ao mais estupendo transe em que desde que hove guerras no mundo se viu o coração humano.

Felice Aclamação, ff. 13-16 (ed. Evelina Verdelho)