domingo, agosto 03, 2008

Epifania


Lembro-me de quando entendi as minhas primeiras frases em Latim, há mais de 20 anos. O arrepio no estômago, a revelação uma língua que me parecia amar desde os primeiros vislumbres da consciência. E um ano depois a emoção das primeiras palavras soletradas em Grego antigo, a voz profunda do meu futuro colega e amigo, o já falecido Victor Jabouille, declinando sílabas olímpicas no gravador ferrugento.

Não voltei a sentir nada de parecido. Ainda que tenha andado lá perto há dois anos, quando comecei os estudos de Árabe clássico e moderno. Havia aquele alfabeto novo. Havia sobretudo a minha primeira língua não indo-europeia. Limpar a cabeça de conceitos que de forma consciente e não consciente me guiaram no processo linguístico desde que bolsei as primeiras palavras. A paixão foi à primeira vista.

Uma língua para mim, no entanto, não se pode reduzir a diálogos mais ou menos surreais. Nunca pretendi aprender línguas para comunicar. O Inglês e o Francês qui-los para os desmontar como se faz a um brinquedo, para ver como eram por dentro, como funcionavam. Aos 9 anos comecei a dissecar o Inglês, aos 13 o Francês. Aos 19 passei olhos desiludidos pelo insípido Esperanto, que de tão simplificado não tem qualquer interesse que não seja o comunicativo - e quanto a esse tenho cada vez mais sérias dúvidas. Houve ainda o Grego Moderno, sempre para ver como eram as suas entranhas.

Com a idade adulta veio a motivação cultural e literária, e com ela o Espanhol. Conhecer os vizinhos do lado através do veículo primeiro (ou segundo, em muitos casos) das suas culturas. Olhadelas vagas pelo Catalão antigo, lambidelas distraídas no Provençal medieval. Esquecidos os últimos, espalhado o primeiro em páginas pasmadas de Cervantes e Borges.

O Árabe clássico era paixão antiga. Correspondida desde os primeiros momentos de aprendizagem. Enquanto subiam e desciam os olhos num ziguezage ora cima ora abaixo na vogal breve, ora ao meio na consoante e na vogal longa. Mas não me tinha tocado ainda como as primeiras leituras engasgadas de Xenofonte ou Luciano ou Fedro. Nem quando comecei a apanhar palavras soltas, sintagmas, pequenas frases na al-Jazîra ou na BBC Arabic.

Até ouvir Mahmûd Darwish ler a sua poesia em árabe, e entender o meu primeiro verso completo. Mais de 20 anos depois lá estava outra vez aquele arrepio no estômago.

2 comentários:

Anónimo disse...

Fui aluna do Prof. Victor Jabouille na FLUL em 1983, nas cadeiras de Latim I e Estudos Clássicos, que veio substituir nesse ano Mitologia.
Há tempos, dou com a palavra memória junto ao seu nome...
Não sabia que o Professor tinha falecido.
A última vez que o vi foi em Canal Caveira, nas sandes de carne assada, junto de colegas que vinham ao Algarve dar umas aulas.
Nunca soube que esteve doente.
Gratas lembranças tenho desse querido professor.

Anónimo disse...

A cadeira era de Cultura Clássica, iniciou no ano de 1984, no meu 2º ano, como opção. Ninguém escolheu a cadeira, só colegas de Filosofia. Meia dúzia de gatos-pingados.
Um desgosto, o professor ter partido.
( anónimo )
Ana Pereira

http://asuldocabo.blogspot.com