domingo, setembro 26, 2010

A praga do embaixador

A cousa conta-se, telegraficamente, assim: depois da Restauração, e até 1669, os papas Urbano VIII, Inocêncio X, Alexandre VII e Clemente IX sempre se recusaram a reconhecer a independência de Portugal. Assim, recusavam receber oicialmente os embaixadores portugueses, e a prover os bispados de Portugal, cousa que a nós nos parece hoje de nenhuma importância, mas que na altura era vital. Em Dezembro 1655, após 15 anos de fracassos, o embaixador Sousa Coutinho consegue ser recebido a título particular pelo papa Alexandre VII, e, poucas semanas depois, deixa-lhe uma chatíssima arenga com as queixas portuguesas. O papa não lhe ligou a mínima, como é natural, mais preocupado em não desagradar aos poderosos espanhóis. Das queixinhas do embaixador português retiro este naco, com a ortografia original do manuscrito que consultei, do Arquivo Secreto Vaticano, e demonstra bem o desespero a que já se tinha chegado em Portugal, perante o católico desprezo dos papas.


Mi sono steso molto in questa materia, ma non tanto, come richiedeua la di lei necessità, e così riducendo il tutto a due sole parole, dico, Beatissimo Padre, col rispetto, che deuo al uero successor di S. Pietro, ma con quella libertà Christiana, che deuo ancora alla sua Catedra, che i mali caggionati dalle durezze passate, hanno bastato à perdere tante anime, che non sò se i due predecessori immediati di Vostra Santità hauran potuto allegare al Tribunal di Dio per scusa legitima di non hauer pasciuta quella gregge si numerosa per hauerli i Ministri del Re Cattolico sollecitati a non farlo, quando il precetto di Dio è si rigoroso al contrario, che Giesù Christo si dichiarò con suo Padre di non hauer trascurata pur una dell' anime à lui commesse: Quos dedisti mihi non perdidi ex eis quemquam. Ben sò, che nel morire ne sentirono acuti stimoli di rimorso, ma non permise Iddio, che chi haueua in uila trascurato si longamente negotio di tanta importanza lo rimediasse nel fine.

quinta-feira, setembro 16, 2010

Quid miraris?

Continuo nos sermões. Frei Francisco Escobar (1617-1679) justifica a cobardia de D. João IV durante as Alterações de Évora (1637), nas quais basicamente não mexeu uma palha para ajudar os revoltosos e fez o jogo espanhol, como obedecendo a desígnios divinos.

Bem ia já mostrando Portugal a impaciência com o governo de Rei estranho no antecipado motim da cidade de Évora, confessando que não tinha já ombros para sustentar tão grande peso: e não deixa de ser mistério, o mover-se na era de trinta e oito. Esperava Portugal na era de quarenta ver-se restituído à glória de ter pai, e rei natural, faltavam-lhe naquele tempo dous anos para chegar à era de quarenta, que muito rompesse em motins, e inquietações! Trinta e oito anos havia, que um miserável paralítico padecia na mesma casa do Remédio; vem um Anjo a mover as águas, e só pera este pobre não havia lugar naquela piscina; impaciente com a opressão de tantos males rompe em brados e suspiros: non habeo hominem! E pera que estranha tanto os males, se tão feito está a padecê‑los? Grandemente Santo Agostinho: Quid miraris, quia languebat, quia ad quadraginta duos minus annos habebat? Estava o paralítico na era de trinta e oito anos de enfermidade, faltavam-lhe dous para chegar a quarenta, esta era a causa da sua impaciência: quid miraris, etc. Na era de trinta e oito vivia Portugal sujeiro à Coroa estranha, faltava-lhe dous anos para chegar a quarenta, em que havia de lograr Rei e Pai da pátria: que muito rompesse em motins, inquietações, quid miraris?

Frei Francisco Escobar
Sermão gratulatório pelo restabelecimento da saúde de D. João IV, 1655

ed.João Francisco Marques, A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração, Quasi, Lisboa, 2007

terça-feira, setembro 14, 2010

Dos impostos

Faz hoje 368 anos que o Pe. António Vieira pronunciou o Sermão de Santo António, na igreja das Chagas, em Lisboa, a apelar à participação de todos no esforço de guerra para manter a independência do reino, restaurada ainda não havia 2 anos. Apelava concretamente a que todos participassem com os seus impostos, o que seria o tema dominante das Cortes que se reuniram no dia seguinte. É uma ideia que continua bem actual, num país onde todos tentam fugir aos impostos, sobretudo os que têm mais, e onde se instalou a prática terceiro-mundista do pagamento sem factura, sem perceber que assim não vamos a lado nenhum. Dou a palavra a Vieira.

Estes (*) são os elementos de que se compõe a república. Da maneira, pois, que aqueles três elementos naturais deixam de ser o que eram, para se converterem em uma espécie conservadora das cousas: Ex eo, quod fuit, in alteram speciem commutatur; assim estes três elementos políticos hão de deixar de ser o que são, para se reduzirem unidos a um estado que mais convenha à conservação do reino. O estado Eclesiástico deixe de ser o que é por imunidade, e anime-se a assistir com o que não deve. O estado da Nobreza deixe de ser o que é por privilégios, e alente-se a concorrer com o que não usa. O estado do Povo deixe de ser o que é por possibilidade, e esforce-se a contribuir com o que pode; e desta maneira deixando cada um de ser o que foi, alcançarão todos juntos a ser o que devem; sendo esta concorde união dos três elementos eficaz conservadora do quarto. Vos estis sal terrae.

(*) o Estado Nobreza, o Estado Eclesiástico, o Estado do Povo.

Pe. António Vieira
Sermão de Santo António (Lisboa, 14 de Setembro de 1642)

domingo, setembro 12, 2010

Pescadores de reinos


No dia 14 de Setembro de 1642, na véspera das segundas cortes após a Restauração, nas quais D. João IV ia tentar obter mais dinheiros dos impostos para financiar a guerra contra Castela, o Pe. António Vieira derrama do púlpito da igreja das Chagas, em Lisboa, um dos meus sermões preferidos, o chamado de Santo António, no qual apela aos nobres e eclesiásticos que se deixem de mariquices se decidam a contribuir também eles para o esforço de guerra, por meio do pagamento de impostos, pois de outra forma não é possível conservar o reino recentemente restaurado.

Fomos pescadores astutos, fomos pescadores venturosos; aproveitámo-nos da água envolta, lançámos as redes a tempo, e ainda que tomámos somente um peixe rei, foi o mais formoso lanço que se fez nunca, não digo nas ribeiras do Tejo, mas em quantas rodeiam as praias do Oceano. Pescou Portugal o seu Reino, pescou Portugal a sua Coroa: advirta agora Portugal, que a não pescou para comer, senão para a conservar. Foi pescador, seja sal.
Sermão de Santo António (Lisboa, 14 de Setembro de 1642)

sábado, setembro 11, 2010

Deus nosso senhor castiga


Ainda a propósito da história da mão de Cristo que se desprendeu da cruz, o primeiro número da Gazeta da Restaração, a primeira publição periódica regular portuguesa, datado de Dezembro de 1641, contra logo na primeira página um curioso caso de um céptico que não se deixava levar por histórias de fradalhada e padralhada, e a quem deusnossenhor castigou.

Num lugar da Beira se afirma que ouue hum homẽ, que ouuindo dizer numa cõuersação que na felice aclamação delRey nosso Senhor fizera o crucifixo da Sè o milagre, que a todos he notorio: disse que podia a caso a imagem do Senhor despregar o braço; & assim como acabou de dizer estas palauras cahio huma parede junto da qual estauão todos os da cõuersação, & sò a elle matou.

Gazeta em que se relatam as novas todas, que ouve nesta Corte, e que vieram de varias partes no mes de Novembro de 1641