quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Da tosse convulsa

A educação de uma pessoa também se vê no comportamento que tem durante uma conferência. Tossir e espirrar insistentemente, conversar ininterruptamente com o parceiro do lado, atender o telefone, entrar a meio, sair a meio, ressonar. Na sessão de hoje do curso de História do Islão, na FLUL, só não aconteceu a última.

Numa das filas da frente estava um senhor que terá apostado em boicotar a interessante conferência do professor Pedro Barbosa, expelindo ruidosamente os pulmões aos poucos, durante quase o tempo todo. A certa altura pareceu ter falecido. Deixou a cabeça cair para o lado e assim se manteve imóvel durante alguns segundos. Infelizmente não tinha morrido, estava apenas a retemperar forças para recomeçar o concerto tússico, agora com mais violência. Em vários pontos do anfiteatro outros tussíferos acompanhavam ora em cânone ora em contraponto o solista. Nunca lhes ocorreu sair e deixar o conferencista falar e nós ouvi-lo.

Na fila atrás de mim uma senhora espirrava copiosamente, e eu sentia-lhe os vapores do ranho no pescoço e na cabeça. Como ontem rapei o cabelo, a experiência foi demasiado húmida e fresca para o me conseguir abstrair e ouvir o Pedro Barbosa. A abertura das comportas nasais durou cerca de 2/3 do tempo da conferência (90 minutos). Claro que nunca lhe passou pela cabeça ir vazar as narinas para o raio que a partisse, e deixar o conferencista falar e nós ouvi-lo.

Atrás de mim dois pombinhos arrulharam durante o tempo todo, e à minha frente um cavalheiro com idade para ter educação atendia o telefone e bichanava suficientemente alto para poder acompanhar-lhe a conversa toda.

Já nem vou falar do desplante dos atrasados que entravam com toda a pachorra e dos apressados que se levantavam a meio para irem à sua vidinha (não me refiro, obviamente, aos organizadores, que por isso mesmo estão justificados e desculpados).

Parece ser uma questão genética. Há uns anos numa conferência patrocinada por uma instituição flamenga, 10 minutos antes da hora marcada estavam lá os franceses, belgas e holandeses todos, e eu, o único dos Pirinéus para baixo. A mesa estava composta, com os elementos todos sentados. Todos? Não, uma cadeira resistia vaga, impávida diante do olhar furioso dos belgas e holandeses que a rodeavam: era a cadeira da hispânica convidada, que estava latinamente atrasada. À hora da conferência nem sinal dos tugas. Um quarto de hora depois, mais coisa menos coisa, começaram a chegar, e a balir as desculpas esfarrapadas do costume - que tinha sido o trânsito. Esse mesmo trânsito que, selectivamente, só afectou os tugas, poupando os holandeses e belgas (já sem falar de mim). Quarenta minutos depois chegou a hispânica que fazia parte da mesa, e quarenta e cinco minutos depois ainda iam pingando tugas, que abriam a porta e trotavam ruidosamente pela sala a arranjar lugar.

Não é por isto que estamos como estamos e a Holanda ou a Bélgica estão como estão. Mas é symptomático.

P.S.: se no dia da minha conferência houver recital de tosse, eu juro que, dependendo do grau de mau feitio com que acordar, ou me calo até os prevaricadores acabaram de cuspir os pulmões, ou pergunto se a minha conferência está a incomodar a sua tosse.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Do verdadeiro chamamento

Si dixeris quare monachi hodie non faciunt signa et miracula, sicuti faciebant apostoli euntes per regiones ad aduocandos homines, respondebimus tibi quia euntes apostoli per regiones ad uocandos homines, ut confiterentur diuinitatem Domini nostri Ihesu Christi, necesse habuerunt facere signa et miracula sepius atque frequentius ut probaretur aduocatio eorum esse uera et ut aduocati scirent et intelligerent ad quid uocarentur. Monachi uero hodie non ita sunt missi uocare ad fidem, quamuis multa signa fiant per eos in occulto, ut sciatur ista beneficia non ex toto discessisse a fidelibus Christi. Sed et cum necessitas cogit, fiunt ab eis signa etiam in aperto, quorum plura nota sunt per diuersa loca in uniuerso orbe.

versão latina medieval da Risâlat al-Kindî, §98

Em linguagem isto fica mais ou menos assim:

Se perguntares porque é que os monges não fazem hoje sinais e milagres, como faziam os apóstolos que iam pelas terras a chamar os homens, responder-te-emos que os apóstolos que iam pelas terras a chamar os homens para reconhecerem a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo tiveram necessidade de fazer sinais e milagres mais vezes e com mais frequência de modo a que se provasse que o seu chamamento era verdadeiro, e que os chamados soubessem e compreendessem aquilo a que eram chamados. Ora os monges hoje não foram mandados para chamar à fé assim, embora se façam por seu intermédio muitos sinais às ocultas, para que se saiba que esses benefícios não se apartaram de todo dos fiéis de Cristo. Mas quando a necessidade a isso obriga se fazem ainda por seu intermédio esses sinais às claras, dos quais muitos são conhecidos em diversos lugares de toda a terra.