domingo, agosto 29, 2010

O levantamento de Portugal

O caso deu-se, segundo uns, no próprio dia 1 de Dezembro de 1640, segundo outros, terá ocorrido apenas no dia da aclamação de D. João IV, a 15 de Dezembro. Seja como for, o caso deu brado na época, e aparece referido em vários textos de propaganda a favor da Restauração de Portugal. Transcrevo da Restauração de Portugal Prodigiosa, que relata os milagres e prodígios associados à Restauração. É uma obra fundamental para o entendimento desta época crucial da nossa História, bem como da temática do Quinto Império, e por isso permanece inédita e desconhecida fora dos meios académicos, tal como a generalidade das outras do mesmo período.

Transcrevo respeitando a ortografia original, excepto nos casos de manifesto erro tipográfico.


Sahindo o Arcebispo da Sè na manhaã do Sabbado com os Conegos, fidalgos, & innumerauel gente, que se ajuntou em hum momento, leuaua diante hum clerigo a Cruz Archiepiscopal, chegãdo a jũto da porta da Igreja de Sancto Antonio, lhe pediraõ algũas pessoas lãçasse a bençã, elle pondo os olhos no Crucifixo lhe pedio quizesse bendiçoar aquelle Pouo. Dizẽ algũas pessoas que então despregou o Sancto Crucifixo a mão direita que tinha pregada na Cruz.

Porém o que todos viraõ olhando pera o Senhor neste passo, foi, que a mão direita estaua despregada, & com o braço em algũa distancia da Cruz, do que dantes ninguem dera fè, sabendose, que da Sé sahiraõ pregadas ambas as mãos com tarraxas. Com esta admirauel demonstraçaõ do Senhor, conceberaõ os prezẽtes mui grande consolaçaõ em suas almas, & a tiueram por claras prendas de o Senhor os auer de defender, & perpetuar na liberdade principiada.

Nos campos de Ourique mostrou Christo Senhor nosso claramente, que o leuantamento de Portugal a Reyno era obra sua, como dissemos no capitulo quinto da primeira parte, quando escolheo o Inuictissimo Rey Dom Affonso Henriquez para Rey de Portugal, e empenhou sua diuina palaura, que nele, & seus descẽdentes estabeleceria seu Imperio, & na decima sexta geraçam attenuada tornaria a por os olhos de sua misericordia.

Nesta Cidade de Lisboa, cabeça do Reyno desprega da Cruz o mesmo Senhor em publico sua mão direita leuantando com ella a Portugal attenuado, caido, & prostrado por terra, desempenhando desta sorte a palaura, que dera a seu primeiro Rey, pois em Principe Portuguez herdeiro de seu Real sangue, de nouo vẽ seus diuinos olhos estabelecendo, & confirmando nelle o Imperio Lusitano, conforme o prometera pelo Sancto Iob, operi manuum tuarum porriges dexteram.

(...)

A este admirauel sinal da mão direita do Senhor podemos atribuir a paz, & quietaçaõ, em que tudo ficou despois de Sua Magestade acclamado Rey, & naõ auer mais sangue, nem mais morte em hũa tam subita & nunca vista mudança de hum Reyno, estando viuo o possuidor delle.


Gregório de Almeida, Restauração de Portugal Prodigiosa, Lisboa, 1643
Parte II, cap. IV, pp.272-273.


domingo, agosto 22, 2010

Made in Portugal

Isto de vir trabalhar para a esplanada tem destas cousas. A menina da mesa ao lado vomita cavalidades xenófobas e nazis há largos minutos a propósito de umas chinelas que se partiram e garante serem feitas na China. Depois pega na malfadada chinela e diz, numa antecipação vitoriosa, "querem ver? olha, made in" - e depois fecha o sorriso e diz rapidamente "Portugal" e muda de assunto.

sexta-feira, agosto 20, 2010

Uma questão de açúcar

Duas senhoras no café, esta tarde. Uma sugere à outra que peça um sumo de fruta. Ela torce o nariz, arrepanha os lábios e responde "não, filha, por causa do açúcar, tem muito açúcar". Depois desenrola os olhos ao longo da vitrine, leva o dedo porcino ao lábio e pede à menina "um bolinho daqueles, não, daqueles, sim, desses". Depois pede um café com adoçante, e enquanto afocinha no creme do bolo de chocolate aponta para o dito cujo adoçante e vai dizendo "é que eu o açúcar não posso". Parece mentira mas eu juro que é verdade.

terça-feira, agosto 17, 2010

Luz, & Calor


Agora que vai a morrer o dia em que se lembram os 300 anos da morte do Pe. Manuel Bernardes (1644-1710), um excerto da Luz e Calor, com imagem da capa de um exemplar que veio da biblioteca do 'meu' convento do Varatojo (Torres Vedras), onde declinei as minhas palavras de grego clássico, lá para os anos 80 do século passado, e onde, se bem me lembro, há uma tela antiga que o representa.

Lavra às vezes o lapidario hum diamante com muytas facetas miudas por cima (chamãolhe rosa): & de qualquer parte que bulís com elle está scintillãdo differentes brilhos. Tal me parece o ineffavel mysterio de Deos feyto Homem: hum diamante de valor inestimavel, que Deos amante meteo no dedo de sua Esposa a Igreja Santa; diamante tão fermoso, & claro, tão sem jaça, nem cabello, que tem dentro em si mesmo todo hum Sol de justiça: Orietur vobis Sol justitiae: & por qualquer parte que o consideremos, fere os olhos do entendimento com differentes luzes, todas manifestações da Divina, & ineffavel Caridade.

Luz e Calor, II Parte, Op. I, Estímulos de Amor Divino: Estímulo V (p. 309 da edição de 1696)

Existe uma edição da Lello, de 1991, desta obra. Achei-a na Feira do Livro, mas nunca vi em nenhuma livraria.

Pe. Manuel Bernardes


Comemoram-se hoje os 300 anos da morte do Pe. Manuel Bernardes, nascido a 20 de Agosto de 1644, e falecido a 17 desse mesmo mês, em 1710. É uma das figuras maiores, um dos expoentes da Literatura Portuguesa, e por isso mesmo continua praticamente sem edições contemporâneas, tirando algumas selectas e edições nas primeiras décadas do século XX, e completamente esquecido e ignorada no ensino.

domingo, agosto 15, 2010

Das referências

Há muitas cousas insuportáveis nas obras académicas, mas poucas mais do que aquele infame hábito de, num livro de 400 ou 500 páginas, citar uma única vez uma obra de um autor, que depois passa a ser referida como "op. cit." ou "loc. cit.", o que, nos casos em que o mesmo autor tem mais do que uma obra, só pode dizer alguma cousa a quem tem memória de elefante ou anda munido de lapinhos e folha de papel volante para ir apontando os nomes das obras. Ainda agora tive recuar 12 páginas de sucessivos "loc. cit." até dar finalmente com o raio que a partisse da referência completa de um manuscrito.

Felizmente vai-se impondo o hábito mais inteligente de nomear sempre o autor, e substituir a obra pela data de publicação, o que permite identificar rapidamente com uma ida à bibliografia. Isto no caso de obras impressas, pois nos manuscritos parece que se mantém a mesma técnica sádica. Quanto a mim, e correndo o risco de ser atacado por isso na defesa, na minha tese as citações são todas referidas ou pela data, ou, no caso de manuscritos ou impressos antigos, pela referência completa. Ah, e não há cá "idem, ibidem": mesmo em notas de rodapé seguidas, a referência vem sempre completa.

sábado, agosto 14, 2010

Só mesmo as que caíram no chão

No dia 2 de Abril de 1645 o embaixador espanhol em Roma preparou uma soberba recepção ao embaixador da Igreja de Portugal (e, às escondidas, também embaixador de Portugal): à meia noite, um grupo de militares varreu a tiros e à pancada a comitiva portuguesa, repetindo igual tratamento fornecido, a 20 de Agosto de 1642, ao bispo de Lamego, embaixador de Portugal. Assim se fazia, também, a diplomacia naqueles tempos em que Portugal e Espanha estavam em guerra aberta, após o 1,º de Dezembro de 1640. E eu estou tão farto deles todos que se pudesse também pegava numa escopeta ou num arcabuz, e corria com eles todos da minha frente.

segunda-feira, agosto 09, 2010

Da transfusão dos sonhos


O Manuel, que tem quási 4 anos, contou-me que montava um golfinho no mar, mas que veio uma senhora e o empurrou, e o golfinho foi-se embora, e ele chorou muito. Appressou-se a esclarecer que aquilo não tinha accontecido mesmo, que tinha sido só um sonho. Mas que mesmo assim tinha chorado. A Carolina, que se achega aos 5 anos, confirmou tudo. Talvez tenha notado algum scepticismo no meu olhar, e explicou que quando o mano está a sonhar e ela o abbraça, os sonhos delle passam para ella, e sonham os dois a mesma cousa.

Tarquinio Merula





Tarquinio Merula (1595-1665)
Interp: Jordi Savall

في ظل الكلام



(13 de Março de 1941 – 9 de Agosto de 2008)