domingo, março 28, 2010

Bebedeira no convento

A poesia estrófica constitui o principal contributo do al-Ândalus na História da literatura árabe. Aqui nascem e desenvolvem-se duas formas: a moaxa (موشح : muwaššaḥ) e o zejel (زجل). Ao contrário da qaṣīda, baseada na prosódia quantitativa e de estrutura monorrimática e monoestrófica, a poesia estrófica estrutura-se, como o nome indica, em estrofes polirrimáticas e baseadas no acento intensivo.

O principal destes géneros estróficos é a moaxa, que acabará por ser exportada e apreciada em todo o mundo árabe, e que de resto continua hoje a ser cultivada, ainda que em moldes diferentes.

A moaxa é composta por 5 ou 6 estrofes, cada uma constituída por uma secção com rima independente, o ġuṣn (غـُصْن ، أغـْصان ou بيت ، أبيات), e outra, o qufl (قـُفْل ، أقـُفال), com rimas e estrutura iguais à kharja (خرجة), o qufl que encerra o poema. A rima do ġuṣn por vezes é interna, ente cada hemistíquio. Uma estrofe adicional, a maṭlaʿ (مَطـْلَع), encabeça a composição, reproduzindo a métrica da carja. Na sua ausência, a moaxa é chamada "careca". A kharja (do verbo kharaja, "sair"), que encerra o poema, pode ser em árabe clássico, árabe dialectal ou romance moçárabe.

Para os estudos românicos é especialmente relevante a kharja em língua moçárabe - o romance falado pelos cristãos (mas não só) do al-Ândalus. Mau grado as dificuldades inerentes aos alfabeto árabe e hebraico, que é como nos chegaram escritas, devido à ausência de escrita de vogais breves, são de uma importância fundamental para o estudo desse romance, na medida em que são os únicos textos que dele nos chegaram (descontando as palavras soltas em obras gramaticais e botânicas).

Em seguida apresento uma tradução provisória de uma moaxa do Cego de Tudela (s. XII), com kharja moçárabe, que assinalo em itálico.

Transliteração da kharja, com o texto moçárabe em itálico:

'amânu 'amânu yâ lamalîḥ ġâri
burkî tû kirš bi-l-lâhi matâri

0 (maṭlaʿ)

Uma destas noites fomos a um convento para a vinhaça,

por entre guardas e camaradas.


1

A correr, uma menina nos trouxe vinho.

Recebeu-nos com hospitalidade e respeito,

e jurou pelos Evangelhos:


“Não o vesti senão com pez,

e no fogo não foi posto nenhuma vez!”


2

E eu disse-lhe: tu, ó mais formosa de todas,

acaso tens a bebida no copo?

Ela disse: “Isso não nos incomoda de todo,


Pois assim o bebemos nos escritos

dos monges e dos bispos.”


3

Confesso-vos, ó gente nobilíssima,

estou preso de paixão por Ahmad:

tem uns olhos que matam de indiferença.


Escondi a paixão em segredo no meu íntimo,

mas as minhas lágrimas desvelaram os meus segredos.


4

As lágrimas do amante desvelaram a paixão,

pois a sua face é como a Lua cheia no horizonte;

tem olhos que matam as criaturas.


E quantos ferozes leões foram mortos

e para os caídos do amor não há vingança.


5

Uma miúda foi encantada por ele,

ficou doente com a rejeição e o orgulho,

recitou e cantou-lhe:


“Piedade, piedade, ó formoso!, diz:

por Deus, porque [me] queres tu matar?


-

(Tradução minha a partir do original árabe e moçárabe.)

sábado, março 27, 2010

Apólogo da Morte



De D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), que teve o azar de nascer no mesmo ano do Pe. António Vieira, e assim viu passar despercebida a sua efeméride.

Apólogo da Morte

Vi eu um dia a Morte andar folgando
por um campo de vivos, que a não viam.
Os velhos, sem saber o que faziam,
a cada passo nela iam topando.

Na mocidade os moços confiando,
ignorantes da morte, a não temiam.
Todos cegos, nenhuns se lhe desviam;
ela a todos c'o dedo os vai contando.

Então, quis disparar, e os olhos cerra:
tirou, e errou! Eu, vendo seus empregos
tão sem ordem, bradei: tem-te homicida!

Voltou-se, e respondeu: tal vai de guerra!
Se vós todos andais comigo cegos,
que esperais que convosco ande advertida?


in As Segundas Três Musas
ed. António Correia de A. E. Oliveira, Liv. Clássica Editora, Lisboa, 1966

quarta-feira, março 24, 2010

Dos Galegos vistos pelos Árabes


«Os galegos descendem de Jafé, o filho mais novo de Noé. O seu país chama-se Galiza: é a parte da Península que se segue ao Gharbe na direcção do Norte, residiam do outro lado da cidade de Braga, situada no Gharbe.

Esta cidade de Braga, que remontava à Antiguidade, foi uma das fundações dos romanos e uma das suas residências reais. Assemelhava-se a Mérida pela solidez dos seus edifícios e a ordenação das suas muralhas. Está hoje quase inteiramente destruída e deserta: foi demolida pelos muçulmanos que expulsaram a população.

O país dos galegos é plano e o solo é o mais das vezes arenoso. Os habitantes alimentam-se principalmente de milho painço e milho alvo. As bebidas que usam são a cidra de maçã e uma espécie de cerveja, dita 'aniska', preparada com a ajuda de farinha.

Os galegos distinguem-se pela falsidade e os seus poucos escrúpulos. Não têm asseio e só se lavam uma ou duas vezes por ano com água fria. Nunca lavam as roupas, desde o dia em que as vestem pela primeira vez até que ficam em farrapos sobre si próprios. Pretendem que, graças ao surro que os recobre, provocado pela transpiração, os seus corpos se mantêm em boa forma física. O vestuário é muito estreito e aberto à frente, de maneira que deixam a descoberto a maior parte do busto. Esta gente é muito corajosa: num recontro à mão armada, prefere fazer-se matar a fugir.»

Ibn ‘Abd al-Mun‘im al-Himyarî (s. XV)
in A. Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, Caminho, 2008, pp. 33-34

terça-feira, março 23, 2010

Um acaso misterioso

Um dos eventos mais importantes do ponto de vista simbólico da Restauração foi o alegado despregar do braço de Cristo da cruz, no próprio 1 de Dezembro. O acontecimento é narrado em vários autores e documentos, logo em publicações de 1641. Inexplicavelmente o caso é desprezado pela historiografia contemporânea - e eu, enquanto agnóstico, estou à vontade para o lamentar. Milagre ou acaso (eu inclino-me naturalmente para a segunda hipótese), marcou profundamente as mentalidades da época, e foi usado e abusado pela propaganda restauracionista como prova do apoio de Deus à Casa de Bragança e ao Portugal Restaurado. O que em seguida se transcreve é a narrativa da História de Portugal Restaurado, do Conde da Ericeira, cujo primeiro volume saiu em 1679.

«(...) pegou D. Álvaro de Abranches na bandeira da cidade, seguiram-no todos, vieram buscar o arcebispo, e quando baixava, defronte da Igreja de Santo António, pouco distante da Sé, gritou o povo que uma imagem de prata de Cristo crucificado, que levava um capelão, a quem tocava, diante do Arcebispo, despregara o braço direito. As felicidades de Portugal e a justiça daquela acção podem persuadir que seria milagre; se sucedeu por acaso, foi pela ocasião muito misterioso. Gritou o povo prostrado por terra, que era milagre, e todos cobravam invencível confiança de que Deus aprovava a gloriosa deliberação dos confederados. Persuadidos de tão grande incentivo, não soavam em toda a cidade mais que vivas e aclamações ao novo Príncipe, valoroso autor da liberdade da Pátria.»

Conde da Ericeira (1632-1690), História de Portugal Restaurado, Vol. I, liv. II
ed. António Álvaro Dória, Livraria Civilização, Porto, 1945. p. 124

quarta-feira, março 17, 2010

Manga Ancha 3


Saiu o número 3 da revista Manga Ancha, que se apresenta como uma revista de literatura em triálogo: Espanha, Marrocos e Portugal. Com um grafismo muito apelativo, o conteúdo surge em 3 línguas: o original, e a tradução nas restantes línguas, espanhol, árabe ou português. O número 3 tem a particularidade de conter uma quarta língua, o amazigh, língua berbere.

Aqui fica a apresentação de mais um número desta excelente revista, que conta, do lado português, com as contribuições de Filomena Alves (conselho editorial e traduções), Adalberto Alves, David Machado, José Riço Direitinho e Risoleta Pinto.

Pontos de Venda em Portugal
  • Algés- Livraria Ideal
  • Aveiro- Livraria da Universidade
  • Lagos: Livraria Livros da Ria Formosa
  • Lisboa- Círculo das Letras
  • Lisboa- Livraria Barata
  • Lisboa- Livraria Pó dos Livros

quarta-feira, março 10, 2010

A Décima Musa


Autora despreocupadamente ignorada em Portugal, mas conhecida em Espanha, Dona Bernarda Ferreira de Lacerda (1595-1644), portuense de nascimento, alcançou relevo nas letras hispânicas seiscentistas, a ponto de o grande Lope de Vega lhe ter dedicado a Écloga Fílis ("Fílis, écloga a la décima musa, Doña Bernarda Ferreira de la Cerda, señora portuguesa"). Em 1618, D. Bernarda publicou um poema épico sobre a Reconquista, onde faz vários ataques velados à União Ibérica - obra que permanece, como é óbvio, inédita modernamente. Apesar do tom patriotista, D. Bernarda escreve em espanhol (na altura uma coisa não tinha necessariamente que ver com a outra), apresentando a seguinte e curiosa justificação (transcrevo modernizando a ortografia, para o pessoal não dizer que não percebe):


Y tu, mi patrio Reyno Lusitano,
Que de muchos de Europa eres corona,
Si por escribir esto en Castellano
He dejado tu lengua, me perdona;
Que es el origen de la historia Hispano,
Y quiero que mi Musa, pues la entona,
También a lo Español vaya vestida,
Para ser más vulgar y conocida.

Confieso te tu lengua que merece
Mejor lugar despues la Latina,
Con que en muchas palabras se parece,
Y es como ella de toda historia dina.
Empero el ser tan buena la escurece,
Y asi la extraña gente nunca atina
Com su pronunciación y dulces modos,
Y la Española es facil para todos.

España Libertada, I 5-6

terça-feira, março 09, 2010

Ibn Ṣāra Aš-Šantarīnī. Poemas del Fuego e otras casidas.


A gente por cá não quer saber da nossa cultura e dos que nasceram por cá, a não ser que sejam actores de novela ou jogadores da bola ou navegantes quinhentistas de mau hálito e sovaqueira fedorenta. Por isso é preciso que venham os estrangeiros estudar os nossos autores e os que, não sendo "nossos", nasceram e viveram por cá. É o caso dos autores do período muçulmano nados ou criados nas nossas terras, e que são olimpicamente ignorados por nós.

São nomes importantes da Literatura Árabe Clássica, como Ibn Çâra ax-Xantarînî (ابن صارة الشنتريني), que nasceu, como o nome indica, em Santarém, na segunda metade do século XI. Em Espanha, no entanto, que é um país decente e civilizado, os autores árabes de origem hispânica são estudados, conhecidos e publicados em edições de grande divulgação. Hoje recebi uma edição da professora Teresa Garulo, com uma selecção e tradução de 109 (cento e nove) poemas de Ibn Çâra. Edição bilingue, note-se.

A tradução é garantidamente boa (apenas é pena não respeitar a distribuição gráfica do texto árabe). Teresa Garulo é uma enorme arabista, e de uma simpatia e humildade comuns na comunidade académica espanhola. Aqui deixo um exemplo, com o original, e depois a tradução da professora Garulo.

ومَهَفهَفِ أبْصَرْتُ في أطْواقِهِ قَمَرًا بِآفاق المَحاسِن يُشْرِقُ
تَقْضي على المُهَجات منه صَعْدةً مُتألِّقٌ فيها سِنان أزْرَقُ

Es un joven esbelto, sobre cuya túnica
veo alzarse una luna
brillando en un cielo de perfecciones.
Ha sentenciado a nuestros corazones
la recta lanza de su cuerpo
donde reluce el hierro de sus ojos azules.



Teresa Garulo (ed.), Ibn Ṣāra Aš-Šantarīnī. Poemas del Fuego e otras casidas. Poesia Hiperión, Madrid, 2001

quinta-feira, março 04, 2010

Cousa espantosa de ver


Logo na terça feyra a noite ouue banquete de cea na sala de madeyra, em que el Rey, e a Raynha, e o Principe, e Princesa comeram, e com elles o Duque, e o senhor dom Iorge, e Rodrigo Dilhoa Embaixador, todos em hũa grande mesa, com muytos grandes dorseis de brocado, que tomauam toda a sala a traues, e na primeira mesa da mão direyta comia o Marquez de Villa Real com as senhoras, donas, e damas, e na primeira da mão esquerda o Arcebispo de Braga, e o Bispo Deuora, e Bispos, e Condes, e pessoas principaes do conselho, que eram muytos de hũa parte, e da outra, assi homens como molheres. E a mesa del Rey com todolos officiaes vestidos de brocados, e seruida por moços fidalgos, que seruiam de tochas, e bacios, ricamente vestidos. E as outras mesas todas com trinchantes, e officiaes vestidos de ricas sedas, e brocados, e muy galantes, e assi os moços da camara ordenados a cada mesa todos vestidos de veludo preto.

No qual banquete ouue infinitas, e diuersas igoarias, e manjares, e singular concerto e abastança, e muytas, e assinadas cerimonias. E quando leuauam a mesa del Rey as igoarias principaes, e fruita primeira, e derradeira, e de beber a elle, e a Raynha, e ao Principe, e Princesa, hiam sempre diante dous e dous, muytos porteiros de maça, reys darmas, arautos, e passauantes, os porteiros mores, quatro mestres salas, o veador, e os veadores da fazenda, e detras de todos o mordomo mor, e todos hiam com os barretes na mão ate o estrado, onde faziam suas grandes mesuras, e os veadores da fazenda hiam com os barretes na cabeça ate o meyo da sala, e do meyo poir diante os leuauam na mão, e o mordomo mor hia sempre cuberto ate o fazer da mesura, que juntamente fazia, e tiraua o barrete.

E era tamanha cerimonia, que duraua muyto cada vez que hiam a mesa. E o estrondo das trombetas, atambores, charamelas, e sacabuxas, e de todos menistres era tamanho, que se não ouuiam, e isto se fazia cada vez que el Rey, a Raynha, o Principe, a Princesa bebiam, e vinham as primeiras igoarias a mesa, e a copeira era cousa espantosa de ver.

Garcia de Resende, Vida e Feitos del Rey Dom Ioam segundo, CXXIV. INCM, 1973