quinta-feira, maio 27, 2010

Da mortificação do tacto

Frei António das Chagas (1631-1682)

Exercicio de Mortificação para toda a Semana

Sexta feira


Mortifique o sentido do Tacto, pondo pela manhaã cilicio atè o jantar, se tiver saude; à noite disciplina por espaço de hum Miserere. Não se toque, nem se coce de advertencia. Não se veja ao espelho, nem parte alguma sua. Jejue, se puder, a pão, & agua; & visite tres vezes o Santissimo Sacramento, fazendo por ter dor de seus pecados; faça por andar cuidando este dia nas dores de meu Senhor Jesu Christo Crucificado.



Obras Espirituaes Posthumas do Veneravel Padre Fr. Antonio das Chagas ...
Lisboa, 1684.

Transcrevo respeitando a orthographia do impresso original, que consultei com reverência. Sobre este injustamente esquecido frade franciscano seiscentista, cuja biografia resumida se pode ler aqui, e cuja sepultura se pode pisar no convento do Varatojo, em Torres Vedras, escreve o seu contemporâneo Pe. António Vieira, em carta a Duarte Ribeiro de Macedo, datada de 1 de Janeiro de 1675:

"... e é que, poucos dias antes do último correio, partido aos 13 de Novembro, se tinha ouvido em Lisboa um Jonas pregando:
Adhuc quadraginta dies et Niniue subuertetur. Este homem, que pode ser que seja conhecido de V. S.ª, é um capitão, grande poeta vulgar, chamado antigamente António da Fonseca, o qual se meteu frade de S. Francisco haverá oito ou dez anos, e hoje se chama frei António das Chagas. Haverá dois ou três anos começou a pregar apostolicamente, exortando a penitência, mas com cerimónias não usadas dos Apóstolos, como mostrar do púlpito uma caveira, tocar uma campainha, tirar muitas vezes um Cristo, dar-se bofetadas, e outras demonstrações semelhantes, com as quais, e com a opinião de santo, leva após si toda Lisboa"


António Vieira, Cartas, ed. J. Lúcio de Azevedo, vol. III, INCM, 1997.
p. 144

quarta-feira, maio 26, 2010

Historiarum Lusitanarum ab anno MDCXL usque ad MDCLVII Libri Decem

D. Fernando de Meneses (1614-1699), 2.º Conde da Ericeira, foi irmão do autor da História de Portugal Restaurado, D. Luís de Meneses, 3.º Conde da Ericeira. Tal como o irmão mais novo, também D. Fernando escreveu uma História do período da Restauração, mas teve o azar de o fazer em Latim; publicados só em 1734, em dois volumes, os Historiarum Lusitanarum ab anno MDCXL usque ad MDCLVII Libri Decem sofrem uma sina ainda mais triste do que a obra do mano mais novo, que mal por mal ainda é citada e lida por alguns excêntricos, e teve uma edição nos anos 40 do século XX - já os Historiarum libri por estarem em latim, permanecem inéditos e desconhecidos. E tendo em conta que D. Fernando participou activamente no processo da Restauração, é escusado lembrar a importância desta obra enquanto História, mas também fonte em primeira mão. Sic transit gloria Portugalliae.

terça-feira, maio 25, 2010

Do reinar e do servir


Nas vésperas do 1.º de Dezembro de 1640 o Duque de Bragança está ainda, de acordo com a historiografia da época, indeciso, sem saber se há-de reclamar a Coroa e embarcar na revolução, ou se há-de continuar na pachorra do Paço de Vila Viçosa, de volta da caça e da música. Consulta então a sua mulher, espanhola de todos os costados, da poderosa casa dos Duques de Medina-Sidónia. D. Luísa de Gusmão ter-lhe-á então respondido mais ou menos o que conta D. Luís de Meneses, o Conde da Ericeira, na sua monumental e incontornável História de Portugal Restaurado, começada a publicar nos finais de Seiscentos, e que, precisamente por ser um marco na historiografia portuguesa, permanece esquecida e por reeditar desde os anos 40 do século XX:

"A Duquesa, que era dotada de entendimento tão claro e ânimo tão varonil, como depois acreditaram largas experiências, ponderando os perigos da sua Casa, sendo objecto do rigor do Conde-Duque, julgou generosamente por mais acertado, ainda que a morte fosse consequência da Coroa, morrer reinando que acabar servindo, e animou o Duque, dizendo que todos os vaticínios eram segurança da empresa, e que neste sentido só a dilação de se coroar podia ser prejudicial."


D. Luís de Meneses, História de Portugal Restaurado, Vol. I
ed. António Álvaro Dória, Livraria Civilização, Porto, 1945, p. 111

segunda-feira, maio 17, 2010


this
forest pool
A so

of Black
er than est
if

Im
agines
more than life

must die to
merely
Know


e. e. cummings
95 poems
Liveright, 2002

domingo, maio 16, 2010

O Cardeal foi às putas

Continuo a ler, extasiado, as cartas do inigualável embaixador Francisco de Sousa Coutinho (c.1597-1660), que em 1655 conseguiu ser recebido a título particular pelo Papa Alexandre VII, quando Portugal andava desde 1641 (e andaria ainda até 1669) a tentar que os sucessivos Papas se dignassem fechar as pernas a Espanha, e reconhecer a independência conseguida em 1640.

Um dos inimigos de estimação de Sousa Coutinho era o Cardeal Protector de Portugal, de seu nome Ursino. Numa carta de 22 de Abril de 1656, diz mesmo isto ao secretário Gaspar de Faria:

"Mas o que sobretudo sinto é o espanto que toda esta Corte tem desde o Papa até o mais ínfimo, de havermos escolhido um Protector, que é o ludíbrio dos Cardeais, e homem de quem no Colégio se não faz caso algum, e me dezia nestes dias um autorizado que me não espantasse disso, que começara a vida com a caça e com as putas sem tratar de outra cousa, que assim continuava ainda, e assim havia de acabar, e tal como isto é o Protector que temos."


Retirei o texto do Corpo Diplomático Português (volume XIII, página 285) actualizando a ortografia, excepto nos casos em que reflecte a pronúncia da época. A edição é a de 1907.

quarta-feira, maio 12, 2010

Da alparca de Deus, ou de como já não se fazem frades desta qualidade


Ainda na mesma carta a D. João IV, de 28 de Janeiro de 1656, o embaixador Sousa Coutinho, em plena guerra militar mas sobretudo diplomática com Espanha, na sequência da Restauração, fala da bravura de um frade franciscano português, imaginativamente chamado Francisco de Assis, perante os ataques verbais de um frade espanhol, que chamava apenas "Duque de Bragança" a D. João IV, recusando-se assim reconhecê-lo Rei.

Estes fidalgos homiziados que aqui andam o tomaram tão pesadamente que, se os eu deixara, queriam tirar satisfação do castelhano; aquietei-os com lhes dizer que de castelhanos não podíamos esperar outro tratamento: que no que se nos não dizia em nossa presença nos não faziam agravo algum, que a ser nela, que não só deles esperaria eu a boa conta que diriam de si, mas que de qualquer dos seus criados, como havia feito frei Francisco de Assis, que é um frade franciscano da Província de Enxobregas, irmão de Manuel Alves Carrilho, português tão desatinado que um destes dias em Ara Coeli, que é o convento em que está, porque houve um frade castelhano que quis usar dos mesmos termos do Duque de Bragança, saltou nele descalçando uma alparca, e moeu com ela de maneira que se lho não tiram das mãos, houvera de sair delas em muito mau estado: o Assis esteve preso alguns dias, mas pôs os castelhanos em estado que diante dele nenhum falava.

Carta de Sousa Coutinho a D. João IV, de Agosto ou Setembro de 1656
in Corpo Diplomático Português, vol. XIII
pp. 229 & seqq.

terça-feira, maio 11, 2010

Da mama de ir a Roma


A cousa é mais ou menos assim. Estamos em fins de Janeiro de 1656, ou seja 15 anos depois da Restauração, mais cousa menos cousa. Cousa que está negra, pois a bem dizer só os estados inimigos de Espanha reconhecem a independência de Portugal (França, Holanda, Suécia, Inglaterra e pouco mais). O mais importante de todos, a Santa Sé, continua sem passar cartão a D. João IV: em Roma vamos no terceiro Papa desde 1640, primeiro Urbano VIII, depois Inocêncio X, e agora Alexandre VII, eleito no início de 1655. Todos se recusam terminantemente a receber a título oficial os embaixadores de D. João IV, e, pior, a prover os Bispados de Portugal.

O Reino está, pois, sem Bispos, sem reconhecimento internacional relevante (tirando a França), e à espera a qualquer momento que a Espanha resolva as outras guerras mais importantes, e ataque em força, de modo a recuperar isto. É neste contexto que D. João IV manda para Roma o embaixador Sousa Coutinho, então representante em Paris, para tentar que o novo Papa se dignasse recebê-lo. Inesperadamente, Sousa Coutinho, que chega a Roma em Novembro de 1655, consegue ser recebido menos de um mês depois. Mas a título particular, não oficial, o que é como quem diz: ficou tudo na mesma.

Apesar do fracasso relativo, Sousa Coutinho, que tinha um feitio dos diabos, está eufórico, e acha (e di-lo em carta ao Rei) que conseguiu num mês o que os outros não lograram em 15 anos. O que não deixa de ser verdade: tal como os outros, a bem dizer não conseguiu nada. Mas ele acha que não, acha que a cousa está arrumada (puro engano, só em 1669 se resolve o problema, já Sousa Coutinho estava morto e enterrado havia quase uma década). E numa das muitas e inflamadas cartas que escreve a D. João IV, saiu-se com esta pérola, que não lhe terá granjeado muitas simpatias entre o Clero, e que poderá explicar as más relações que manteve sempre com o Cardeal Protector do Reino, Ursino, e sobretudo o ter sido mandado regressar à base por D. João IV nesse mesmo ano:

O que [o Cardeal Ursino] escreve a Vossa Majestade que o Papa declarou, ou deu a entender que daria Bispos a Portugal, mas que não receberia Embaixador salva pace, cousa é que lhe não saiu nunca pela boca, são openiões (sic) vulgares, particularmente dos nossos frades portugueses, que como de haver Embaixador se segue por consequência infalível terem Núncio no Reino, e tirar-se-lhes a mama de virem a Roma a título de servirem a Vossa Majestade, andam apontando estes meios pelas praças, e pelas casas dos Cardeais.

Carta de Sousa Coutinho a D. João IV, de 28 de Janeiro de 1656
in Corpo Diplomático Português, vol. XIII
pp. 229 & seqq.


Modernizei a ortografia excepto quando reflecte a pronúncia da época. A edição é retirada do Corpo Diplomático Português, edição monumental, ainda que com muitos erros, que não é reeditada desde o século XIX, seguindo uma tradição muito portuguesa, de não reeditar obras de referência.

Nota: aquele senhor bem posto ali em cima é o Papa Alexandre VII (1655-1667)
Este é um blogue laico, e portanto não concede nem faz tolerância de ponto pela visita de um líder religioso.

sábado, maio 08, 2010

Dos livros que matam

Não consigo abrir um livro sem terror: acredito que a literatura mata.
Pedro Eiras

A propósito da apresentação das Substâncias Perigosas de Pedro Eiras, hoje, na Trama, e do tema da literatura que mata, lembrei-me da história de al-Jâhiz (*), grande estudioso árabe que nasceu em Baçorá, actual Iraque, por volta de 781. Foi este al-Jâhiz um tremendo estudioso, que tinha um terrível vício: ler. Ler muito. Conta-se que pagava aos livreiros de Bagdade, onde viveu grande parte da sua vida, e de Baçorá para o deixarem pernoitar nas suas livrarias, no meio dos livros, que lia horas a fio, até ser dia. O que talvez tenha vindo a ser a sua desgraça. E é com isto que regresso à frase que serve de epígrafe a esta nuga. É que não terá sido a literatura a matar, em 869, al-Jâhiz, mas, muito mais prosaicamente, uma pilha de livros mal equilibrados que se abatera sobre ele.


---

(*) Correctamente a transcição é al-Jâḥiẓ (الجاحظ). O nome é, na verdade, uma alcunha. A palavra significa qualquer coisa como "de olhos esbugalhados" - mal que ataca muito boa gente que gosta de ler.

quinta-feira, maio 06, 2010

Diálogo entre Babieca y Rocinante



«Diálogo entre Babieca y Rocinante

Soneto

B. Cómo estáis, Rocinante, tan delgado?
R. Porque nunca se come, y se trabaja.
B. Pues qué es de la cebada y de la paja?
R. No me deja mi amo ni un bocado.

B. Andá, señor, que estáis muy mal criado,
pues vuestra lengua de asno al amo ultraja.
R. Asno se es de la cuna a la mortaja.
Queréislo ver? Miraldo enamorado.

B. Es necedad amar? R. No es gran prudencia.
B. Metafísico estáis. R. Es que no como.
B. Quejaos del escudero. R. No es bastante.

Cómo me he de quejar en mi dolencia,
si el amo y escudero o mayordomo
son tan rocines como Rocinante?»

Cervantes, Don Quijote de la Mancha

segunda-feira, maio 03, 2010

So shy shy shy(and with a
look the very boldest man
can scarcely dare to meet no matter

how he'll try to try)

So wrong(wrong wrong)and with a
smile at which the rightest man
remembers there is such a thing

as spring and wonders why

So gay gay gay and with a
wisdom not the wisest man
will partly understand(although

the wisest man am i)

So young young young and with a
something makes the oldest man
(whoever he may be) the only

man who'll never die


e. e. cummings

Boas informações

O café do Modelo de Torres Vedras informa num cartaz que de Segunda a Quinta encerra às 23:00. Já às Sextas e Sábados o cartaz lembra que encerra às 23:00. E aos Domingos e feriados o cartaz avisa, não vá alguém ir ao engano, que encerra às 23:00. É sempre bom saber.

Da felicidade dos homens


Borges, em 1978, já cego.
«Yo sigo jugando a no ser ciego, yo sigo comprando libros, yo sigo llenando mi casa de libros. Los otros días me regalaron una edición del año 1966 de la Enciclopedia de Brokhause. Yo sentí la presencia de ese libro en mi casa, la sentí como una suerte de felicidad. Ahí estaban los veintitantos volúmenes con una letra gótica que no puedo leer, con los mapas y grabados que no puedo ver; y sin embargo, el libro estaba ahí. Yo sentía como una gravitación amistosa del libro. Pienso que el libro es una de las posibilidades de felicidad que tenemos los hombres.»
Jorge Luis Borges, Borges Oral, Alianza Editorial, 2006