quarta-feira, outubro 08, 2008

Uma questão de bom senso

Tenho de fazer uma manifestação de interesse, antes de entornar aqui a minha má disposição: adoro conduzir.

Até aos finais de 2006, isto é, até aos meus 35 anos, nunca me passou pela cabeça tirar a carta. Perante o espanto incrédulo dos que me perguntavam - perdão, que me exclamavam "porquê?!", sempre respondi que não me fazia falta nenhuma, que ia a todo o lado de transportes públicos ou a pé, que não era rico para gastar rios de dinheiro em impostos, revisões, combustível, prestações e mais um enorme etc. Sempre me mostrei insensível aos batidos argumentos da independência ("ai é uma independência") e à esfarrapadíssima desculpa dos maus transportes ("ainda se Lisboa tivesse bons transportes").

Mas nos finais de 2006, pouco depois de fazer 35 resistentes anos, decidi tirar a carta. A razão foi simples: estava num processo de mudança radical de vida, e além disso parecia-me evidente a necessidade de um carro para trazer os sobrinhos da escola. Arrastei-me durante mais de um ano, com várias pausas para descompressão mental, em insuportáveis aulas de código e em ligeiramente mais animadas aulas de condução. Lá tirei a dita cuja em Janeiro deste ano da graça de 2008, e, com carro novo e baratinho nas unhas, lá me lancei à estrada, para ver se afinal ficava assim tão independente e se os transportes públicos eram assim tão maus.

  1. A independência - Admito que o problema possa estar na definição de "independência". É que até agora eu não dei por nada. Com a excepção de duas saborosas (mas não indispensáveis) viagens ao Alentejo e Algarve num misto de trabalho e ócio, desde Janeiro ainda não dei por nenhuma independência. Ainda não fiz nada que não pudesse ter feito sem carro. Jantares de amigos, teatro, cinema. Nada. Continuei a ir de transportes públicos ou a pé, que é muito mais económico. Ainda fiz algumas experiências. Fui meia dúzia de vezes de carro para a faculdade, mas rapidamente me dei conta da tolice. Não compensa: é muito mais caro do que ir de autocarro, gasta-se o mesmo tempo a chegar lá (ou mesmo mais, em horas de ponta), e ainda se tem de procurar lugar para estacionar. Num jantar de amigos levei o carro. Sem qualquer necessidade e sem qualquer vantagem: além de ter ficado impedido de beber a belíssima vinhaça à vontade, gastei incomparavelmente mais dinheiro, perdi tempo e nervos à procura de lugar para estacionar, e no fim de contas ainda havia autocarros à hora em que me vim embora. Por isso continuo hoje, 10 meses depois de ter carta, a usar quase exclusivamente transportes públicos e a andar a pé. Abri apenas djuas excepções: primeiro, para as saídas nocturnas aqui em Torres Vedras, pois vivo a cerca de 3km do meu bar preferido, e não me apetece muito, depois da noitada, ainda fazer tal distância a pé. Independência? Nem por isso: tive de abdicar das cervejolas. É que se conduzir... A segunda excepção são as incursões ao supermercado com a minha mãe, e aí de facto é a única vantagem palpável de ter carta, e ir buscar os miúdos à escola, pois enfiar 2 pimpolhos de 2 e 3 anos num autocarro é tarefa para a qual os meus nervos não estão ainda calejados. Moral da história: não só não ganhei nenhuma independência, como perdi bastante, ao ter de deixar de beber socialmente quando uso o carro ("ai é uma independência!"), e sobretudo ao ter apertar o cinto para a prestação, para o seguro, para o combustível e para o imposto. Mas que grande independência que me saiu na rifa...

  2. Os transportes são mesmo maus? Não. Só pode dizê-lo quem nunca andou neles. Vejamos. Tenho autocarros a sairem de 7 em 7 minutos à hora de ponta, de 30 em 30 nas horas mortas, para Lisboa. A paragem é a 10 metros do Metro do Campo Grande, outros tantos a pé para a Faculdade - obviamente vou a pé. O percurso demora no máximo 40 minutos, sensivelmente o mesmo que o trajecto de carro - se não houver engarrafamentos na Calçada de Carriche, que o autocarro evita elegantemente, ao usar as faixas "bus". Para voltar para casa o ritmo de passagem de autocarros é o mesmo, e vai até às 00:30. Nada mau. Podia ser melhor, mas não é nada mau. Dá para jantares, cinema, teatro. Dir-me-ão que tenho a sorte de trabalhar ao pé da paragem do autocarro. É verdade. Mas a (má) experiência de me deslocar de carro em Lisboa para ir a outros sítios, uns mais centrais outros menos, diz-me que os transportes continuam a ser a melhor opção. A não ser que se seja como uma pessoa que eu conheço, que acha que ir do Metro do Campo Pequeno à Gulbenkian a pé é uma distância inaceitável. E aí parece-me que não há muito a fazer... E ainda que não fosse assim, há sempre o aspecto económico: não há calculadora que resista à comparação entre andar de carro e andar de transportes. O meu irmão, que às vezes vai para Lisboa de carro, disse-me em tempos, quando ia todos os dias assim, que gastava mais de 100€ por semana em gasolina, fora as portagens (cerca de 5€ por dia). Ora nessa altura o passe de 30 dias para Lisboa custava pouco mais de 100€... Mais palavras para quê?
Repito o que disse no início: adoro conduzir. Adoro. Por mim fazia viagens de 300km todas as semanas. No entanto ainda tenho algum siso. Pouco, mas tenho. E pouco dinheiro. E prezo a minha saúde. Por isso, se tiver de optar entre uma despesa insuportável em combustível e portagens, uma pilha de nervos diária com o pára-arranca, uma "renda" de prestação do carro e do seguro, uma barriga a crescer de sedentarismo, com os problemas de saúde daí decorrentes, por um lado; e uma despesa fixa e relativamente reduzida em passes, viagens descansadas a dormitar ou a ler, caminhadas a pé (as tais que me ajudaram a perder quase 40 kg em dois anos), então eu não hesito: o carro fica estacionado em casa, para ser usado só em ocasiões restritas e bem definidas. É por isso que pus 15€ de gasolina já não me lembro há quantas semanas, e o depósito continua confortavelmente fornecido.

Podia ainda falar dos benefícios ambientais desta opção, mas são tão óbvios que até um chimpanzé amestrado os entende, e portanto poupo o meu latim.

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