Em relação ao coiso ortográfico, eu não tenho, como já disse, uma posição apaixonada. No entanto tendo para o apoiar. Por várias razões, que tentarei esquematizar, recorrendo a alguns dos argumentos contra mais utilizados.
Argumento 1 - as consoantes mudas ("inspecção") servem para abrir a vogal pré-tónica. É falso. De facto o português europeu tem tendência para fechar as pré-tónicas (isto é: as sílabas antes da acentuada), mas não são as consoantes mudas que as abrem. Vejamos alguns exemplos:
- "actual" tem a pré-tónica fechada (ac-), apesar da consoante muda;
- "inflação" tem a pré-tónica aberta (-fla-), apesar de não ter qualquer consoante muda.
Outros exemplos:
- Com consoante muda mas pré-tónica fechada: actualizar, actividade, actriz, etc. Expliquem-me lá o que está a fazer ali o "c" que não se pronuncia nem abre coisíssima nenhuma. Alguém diz "àtualizar"?
- Sem consoante muda mas com pré-tónica aberta: corar, pegada (marca de pé), pregar (predicar), pregador, pregação, etc. Foi precisa alguma consoante muda? Alguém diz "curar" ou "pgada" ou "prgar" ou "prgador" ou "prgação", naqueles contextos?
Já agora, porquê o apego ao "p" mudo de "óptimo"? Não é pronunciado, nem preciso para abrir nada. É etimológico? Pois é. Tal como era o "p" de "esculptura" e saiu da escrita. O que é que tem o "p" de "óptimo" a mais que o "p" de "esculptura"? A atual ortografia é incoerente, nestes e noutros casos.
Argumento 1a - As consoantes mudas são vestígios etimológicos. Certo. Mas então porque é que não pedem que as restituam em palavras como "condução", que até ao século XX se escreveu "conducção"? E já agora, porque não retomar os "y", "th", "ch", consoantes duplas, etc - afinal são também eles vestígios etimológicos.
Argumento 1b - As pessoas vão passar a pronunciar "âtor" por falta do "c" mudo. Falsíssimo. Não só pelo que em cima se escreveu e em baixo se escreverá, mas porque a experiência o desmente: é o mesmo argumento que os brasileiros usam para não quererem acabar com o trema, dizendo que as pessoas vão passar a dizer "linghiça". Ora nós todos sabemos que isso é falso, nós não usamos trema e nunca ouvi ninguém pronunciar dessa forma.
Argumento 2 - A língua deve evoluir naturalmente. Certíssimo. Mas um acordo ortográfico não muda a língua, nem nunca mudou. Aliás, a ortografia é uma mera convenção mais política do que linguística. A ortografia que usamos hoje não tem nem 100 anos, pois foi estabelecida em 1911, tendo até sofrido várias alterações entretanto (eu ainda aprendi a escrever "fàcilmente", o que hoje é errado). O próprio alfabeto é uma convenção, no nosso caso com motivações culturais. Porquê o latino e não o grego, o cirílico, o árabe? O persa, língua indo-europeia fortemente vocalizada (como a nossa) usa um alfabeto baseado no árabe, que nem sequer grafa as vogais breves - porque está pensado para uma língua semita, o árabe, onde as vogais não têm o relevo que têm nas línguas indo-europeias. Porquê então o alfabeto árabe? Porque a religião oficial é o Islão. De resto as línguas indo-paquistanesas, quase todas indo-europeias, escrevem-se com pelo menos 3 alfabetos diferentes, de acordo, em geral, com a religião. O urdu paquistanês, que é uma variante do hindi indiano, escreve-se num alfabeto arábico, enquanto o hindi se escreve com os "devanagari" já usados no sânscrito. Outras línguas indianas, como o concanim, usam o alfabeto latino, por razões históricas. O romeno, língua latina, escreveu-se durante muito tempo com alfabeto cirílico, tendo depois passado para latino - sem que a língua, obviamente, mudasse.
Argumento 3 - Vamos passar a escrever "fato". Falso. O acordo prevê apenas a queda das consoantes mudas. Ora, em "facto" o "c" é pronunciado, e, como o texto do acordo prevê, vai lá ficar.
Argumento 4 - O acordo é uma cedência aos brasileiros. Falso. Apesar de realmente mudar mais (mas a diferença é insignificante) a ortografia portuguesa, na prática é ela por ela.
Argumento 5 - O inglês também se escreve de maneira diferente nos países anglófonos. Sim, é verdade. E? Este acordo na prática deixa tudo na mesma. O léxico brasileiro afetado é menos de 1%, o luso-africano pouco mais de 1%. As grandes diferenças mantêm-se. Nós continuaremos a escrever "prémio", eles "prêmio". Nós continuaremos a escrever "facto", eles "fato". A única grande mudança é a queda das inúteis consoantes mudas. Portanto, continuará a haver uma ortografia brasileira diferente da luso-africana.
Argumento 6 - A ortografia é também uma questão afetiva. Certo. Mas estamos a discutir ortografia ou afetos? O grande pensador português Eduardo Lourenço, na casa dos 80 e muitos anos, escrevia há não muito tempo que continuaria a escrever "como aprendeu". Bom, suponho então que escreverá "êle", "mãi", "pae", "côr" e outras coisas que tais, que eram norma quando ele foi alfabetizado. Já sem falar dos acentos dos advérbios de modo, eliminados nos anos 70. Como não acredito que ele, com tanto livro publicado, escreva "êle é o pae do Victor, indiscutìvelmente um bom rapaz" (a não ser que depois lhe emendem os erros na tipografia), parece-me que há muita insensatez naquela afirmação (ou "affirmação"? ou "affirmaçom"? ou "afirmaçom"? ou "affirmaçam"? etc. já se escreveu destas formas todas).
Argumento 7 - Este acordo interessa às editoras. Não. Este acordo interessa a todos. Não foi feito por editores nem por políticos. Foi feito por pessoas sérias, linguistas e filólogos (e eu nem gosto muito de linguistas, mas o seu a seu dono). Pelo contrário, as editoras foram as primeiras a insurgir-se contra ele. Agora estão conformadas, e adaptaram-se rapidamente.
Argumento 8 - Este acordo é fruto de políticos, não se pode legislar sobre a língua. Falso. Vide supra, argumentos 2 e 7, sobretudo.
Este texto foi escrito usando a nova ortografia, como certamente notaram (ou, como se escrevia ainda no século XIX, "notarão").
2 comentários:
Cala-te o paneleiru, nox purtuguesex nunca vamux a iscreveire como ox brazucax por ixo cala-te ou encho-lhe a cara de tapax.
Mas os accordos orthographicos tẽem ainda uma outra consequência juntamente com a escripta electrónica, que he a de devolverem ao portuguez, não só a variedade orthographica, como a producção de variantes, e com isso a de lhe restituirem a sua graphia original, in statu ante, antes qualquer accordo padronizante e reductor da tal evolução natural da língua que tanto se apregoa e por motivos tão bradàdamente políticos. Abaixo a padronização, viva a liberdade!
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