sábado, dezembro 26, 2009

Dos excessos

É voz corrente que durante uma dieta não faz mal um dia de excessos de vez em quando. Dizem-no médicos e nutricionistas. Ainda que não faça muito sentido, eu sempre tenho acreditado nisto. Mas como fica sempre a dúvida a roer o sossego, tenho evitado os excessos - até porque a balança começa aos gritos nas raras vezes em que condescendo. Por isso, neste Natal resolvi limitar os excessos ao mínimo possível: meia dúzia de fatias de bolo rei na véspera e dia de Natal, 4 bombons (sim, contei-os), um prato de bacalhau com batatas fritas e arroz. A balança não gostou, e já cá cantam 2,5kg a mais em relação a Sexta-Feira. Por isso, venham-me cá com histórias de que se pode prevaricar de vez em quando, que levam com a balança na cabeça.

P.S.: não se pense que são paranóias, quem me conhece sabe que nos últimos anos perdi cerca de 40kg, passando de cachalote a orca. E apesar de só comer vegetais e peixe cozido e de correr entre 10 a 15km dia sim dia não, a barriga continua protuberante - e desenganem-se os eventuais interessados, a barriga é, juntamente com os pés n.º 46, a única protuberância significativa da minha anatomia.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

Os ouvidos de Deus


«Na Música, a que S[ua] Majestade era tão conhecidamente inclinado, foi cousa muito advertida, e reparada, que toda era ordenada ao culto Divino. Até hoje não houve no Mundo livraria de Música, como a que S[ua] Majestade tinha ajuntado de todo ele, e de todos os famosos Mestres de todas as idades. Mas que continha toda esta livraria? Missas, Vésperas, Psalmos, Poesias, e Versos Divinos: enfim, Música Eclesiástica. A música de David lançava os Demónios fora dos corpos: há outra música, que mete os Demónios na alma. Toda a Música de S[ua] Majestade era verdadeiramente Música de David, nem podia ouvir outra. Tendo tantos Músicos, e gastando tanto com eles, não tinha S[ua] Majestade Músicos de Câmara, senão só de Capela. Quando queria ouvir Música, não mandava cantar um tono, que é o gosto ordinário dos Príncipes, e dos que o não são; mandava cantar um Psalmo, ou um Magnificat, ou outra cousa Sagrada, com admiração de todos. Muitos dos Psalmos de David têm por título: Ipsi David: Para o mesmo David. Lede estes Psalmos, e achareis que todos continham louvores de Deus: de sorte que a Música, que era para David, era juntamente para Deus; e a Música, que era para Deus, era juntamente para David. Cá os Reis do Mundo têm Música de Câmara, e Músicos de Capela: Música para si, e Música para Deus. David, e El Rei D. João não eram assim: os seus ouvidos eram como o seu coração, feitos pela medida dos ouvidos de Deus; e só o que nos ouvidos de Deus fazia ressonância, tinha também harmonia nos seus ouvidos.»


Pe. António Vieira
Sermão das Exéquias do Augustíssimo Rei D. João IV o Animoso, o Invicto Pai da Pátria de Imortal Memória

in João Francisco Marques (ed.), Sermões do Padre António Vieira. Morte e Sepultura. Oratória Fúnebre. Figueirinhas, Porto, 2009

quarta-feira, dezembro 23, 2009

O meu Virgílio

Um excerto do sermão das exéquias de D. Teodósio (1634-1653), primogénito de D. João IV.
«Os seus amigos eram aqueles dous, que só acompanham a um homem a toda a parte, a que vá, que são Deus, e os livros. São os livros conselheiros sem respeito, e sem adulação, mas destes mesmos não tomava, senão os livros que são amigos; que também há outros, que são os maiores inimigos que tem a alma, que são os livros profanos. Nunca lia livros profanos, senão Filosóficos, ou Sagrados: dos Poetas um Homero, e a Virgílio; a este segundo chamava: O meu Virgílio


Pe. António Vieira
Sermão das Exéquias do Sereníssimo Príncipe de Portugal D. Teodósio de saudosa memória.

in João Francisco Marques (ed.), Sermões do Padre António Vieira. Morte e Sepultura. Oratória Fúnebre. Figueirinhas, Porto, 2009

domingo, dezembro 20, 2009

O Invicto Pai da Pátria


Do sermão das exéquias de D. João IV (1656). Retirado de uma bellíssima edição do professor João Francisco Marques, que tive o prazer de conhecer numa viagem de autocarro entre a Cidade Universitária e a Igreja de São Roque. Uma longa conversa embalada pelos engarrafamentos de Lisboa, em que apprendi mais do que em centenas de páginas de chartapácios.

«Foi El Rei D. João um Rei buscado, e achado por Deus. Há Reis, que parece que os fez a fortuna a olhos fechados, sem buscar, nem achar, senão acaso. Destes estão cheias as Histórias, como estiveram vazias as Coroas. El Rei D. João não só foi buscado, e achado, se não buscado, e achado por Deus. Mas onde o buscou Deus, e o achou? O que Deus buscou, era um Príncipe, que pudesse ser Rei, e Restaurador de Portugal: buscou-o entre os Príncipes pertensores do Reino, e achou-o na Casa de Bragança; buscou-o entre os Príncipes da Casa de Bragança, e achou-o na pessoa d'El Rei D. João. Os Príncipes pertensores à Coroa de Portugal foram cinco: Espanha, França, Sabóia, Parma, Bragança; e assim como Deus buscou a David entre todas as Tribos, e o achou no Real de Judá, assim buscando um Rei Restaurador de Portugal entre todos, os que tinham, ou podiam ter algum direito a ele, só na Real Casa de Bragança o achou.»
Pe. António Vieira
Sermão das Exéquias do Augustíssimo Rei D. João IV o Animoso, o Invicto Pai da Pátria de Imortal Memória

in João Francisco Marques (ed.), Sermões do Padre António Vieira. Morte e Sepultura. Oratória Fúnebre. Figueirinhas, Porto, 2009

sexta-feira, dezembro 18, 2009

Asfixia geológica

A TVI annunciou que tem provas irrefutáveis, resultantes de investigação da Felícia Cabrita, de que o Primeiro Ministro terá recebido luvas para permittir que occorresse o sismo de há dois dias. Segundo a TVI, as luvas são de lã cinzenta com pespontos azuis. Manuela Ferreira Leite já reagiu, denunciando o que designou por "intolerável asfixia geológica da sociedade portuguesa".

domingo, dezembro 13, 2009

Das paixões

De Frei Amador Arrais (1530-1600):

«Inda que sejas senhor das últimas Índias, e todo mundo te adore; se teus desejos, e paixões forem desordenadas, serás servo, e dentro de ti subjeito a leis iníquas. Então, com razão, dominarás sôbre tôdas as cousas, quando puderes ser Rei de ti mesmo.»

Diálogo IV, Parte I, Cap. IV

Conservei a orthographia da edição consultada:

Fr. Amador Arrais, Diálogos, ed. Mário Gonçalves Viana
Liv. Figueirinhas, Porto, 1944. p. 168

Maraviglioso ardimento


«Il Re di Portogallo fece grãdissima vccisione de Mori, & mẽtre combatteua con marauiglioso ardimẽto, & valore fu colto da una moschettata in vn fiãco, & vn'altra gli era stato amazzato il cauallo. Onde egli caddè in terra, et fu anco tosto con cinque colpi di lãcia morto questo misero Re.»

Battista Platina, Onofrio Panvinio, Antonio Ciccarelli, Historie delle Vite dei Sommi Pontefici, dal Salvatore Nostro sino a Clemente VIII..., Veneza, 1594


O excerpto transcripto, respeitando integralmente a orthographia e a pontuação da edição de 1594, diz respeito à vida do Pappa Gregório XIII, escripta por Antonio Ciccarelli.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Da falta de pachorra

Não tenho impressora. Por isso vim a casa da minha mãe imprimir da HP dela. Como ela não estava em casa e não sei a password para entrar no seu Linux, contei até 10, respirei fundo e arranquei em Windows Vista. Lembro-me de que quando lhe instalei a impressora no Linux neste mesmo portátil bastou espetar-lhe o cabo USB, apareceu uma janela a dizer que tinha detectado a impressora modelo tal e que estava a partir daquele momento instalada. Sem mais nada.

Por isso, e como toda a gente insiste na lenda urbana de que o Linux é muito complicado e o Windows é que é fácil, achei que não havia razões para me enervar por antecedência. Vã esperança. Depois de largos minutos a arrancar pachorrentamente (não sem antes bloquear e obrigar a reiniciar), lá tossiu, pigarreou e gaguejou uma janela a dizer que tinha achado um dispositivo novo e se queria que o instalasse. Sim, filho, quero. Vários cliques e janelas depois, anunciou triunfante que não tinha conseguido instalar, pois não tinha o CD do produto com os drivers. Como em Linux não foi preciso CD nenhum, estranhei, mas rendi-me. Lá achei na net um grossíssimo ficheiro de 100 megas, na página da HP. Saquei, cliquei, respondi a inúmeras perguntas, e estou há cerca de 10 mnutos à espera de que esta MERDA instale. Se juntar o tempo que esta MERDA demorou a arrancar, mais o tempo que esta MERDA demorou a arrotar janelas sucessivas a comunicar que ia procurar não sei o quê não sei aonde, mais o tempo que esta MERDA demorou a chegar à conclusão de que é uma MERDA e que não conseguia instalar sem o CD, mais o tempo que, depois do download dos drivers, esta MERDA está a instalar, com toda a pachorra, a sacar mais cenas da net (então porque raio é que saquei um ficheiro de 100 megas se isto vai sacar ainda mais durante a instalação???), mais o tempo que decorreu desde que iniciei esta MERDA e comecei este calvário, já lá vão exactamente 43 minutos - e barra de progresso diz que está no passo 2 de 4 e eu acho que vou desisir e esperar que a minha mãe chegue, para entrar em Linux no mesmíssimo computador e usar a mesmíssima impressora.

terça-feira, dezembro 01, 2009

Do Quinto Império

Faz hoje 369 anos.

Excerto de um sermão de Fr. Luís de Sá, pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, logo a 16 de Dezembro de 1640, um dia depois da aclamação de D. João IV como novo Rei de Portugal.

«Dizei-me, animosos Lusitanos, qual de nós duvidou nunca de que havíamos de vir a ter Rei natural, que restaurasse este Reino próprio, Império de Deus, depois daquela célebre promessa, que Jesus crucificado nosso Deus fez na noite antes da memoranda batalha de Ourique àquele raio da guerra, que ali jaz (*), sempre testemunha viva desta promessa, e verdade nunca morta, o nosso primeiro Afonso, e primeiro Rei deste Reino: volo in te (lhe disse o Senhor falando de rosto a rosto com ele) et in semine tuo imperium mihi stabilire: quero em ti, e em teus descendentes fundar um Império (não Reino só, não) próprio para mim, e se este reino e império do Senhor havia de ter esta larga interpolação de sessenta anos em que o governou Castela, também a restituição dele ficou profetizada logo deste tempo, pelo ermitão santo, nosso Samuel Evangélico, que naquela mesma noite falou ao nosso Rei: vinces, et non vinceris: posuit enim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque in sextam decimam generationem in qua attenuabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit (**), quem depois destas palavras (que no próprio original se guardam no cartório do real mosteiro de Alcobaça, cabeça da minha religião Cisterciense nestes reinos) firmadas com a própria mão Real daquele Rei que ali vedes: duvidou nunca, que havíamos de ter Rei Português, que nos livrasse do jugo de Castela? Ninguém certo: é bem verdade, que para em tudo ser profecia, e figura David do nosso felicíssim Rei, assim como os Hebreus variavam nas palavras, assim nós éramos vários nos discursos, acerca da pessoa, e mais do tempo, sendo, porém, sempre entre nós tão caseira esta profecia de nossa Restauração que havia quem a não tivesse pela primeira verdade.»

in João Francisco Marques (org.), A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração. Quasi, 2007.
pp. 84-85 (emendei apenas os erros crassos no latim)

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(*) Recordemos: o sermão foi pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, onde está o túmulo de D. Afonso Henriques, para onde provavelmente o pregador estaria mesmo a apontar.

(**) Vencerás e não serás vencido: na verdade [Deus] pôs sobre ti e sobre a tua descendência os olhos da sua misericórdia, até à décima sexta geração, na qual se atenuará a descendência, mas sobre ela, atenuada, ele deitará os olhos, e verá.