quarta-feira, dezembro 01, 2010

Soubesse a espanholada a choldra em que isto se tornaria e não teria sido preciso andar depois à bulha quase 30 anos

RELAÇÃO DE TUDO O QUE PASSOU NA FELICE ACLAMAÇÃO DO MUI ALTO E MUI PODEROSO REI DOM JOÃO O IV
(1641)

Sexta-feira, depois de estar prevenido tudo quanto era necessário para a defensa da vida − siguindo o parecer de D. Miguel de Almeida − se confessaram todos, e se prepararam, pedindo a muitos relegiosos orações e missas, e dispondo-se como quem havia de entrar em um conflito, em um transe e em um perigo tão atroz, tão horrível, tão estupendo e tão alheio do que até agora viram quantas repúblicas hove no Universo. À tarde deste mesmo dia foram alguns dos mais autorizados do Povo a manifestar aos fidalgos que estavam com grande zelo e vigilância prevenidos para o sábado seguinte. Alegraram-se os fidalgos vendo que na ocasião era certo que o Povo os havia de siguir.

Amanheceu o desejado dia, e além de outras muitas circunstâncias que nele houve para se presumir com sólido fundamento que foi este impulso disposto e governado pela vontade divina, se considerou grande mistério em repetir então a Igreja aquelas palavras da Epístola Ad Romanos, cap.13, quando o glorioso apóstolo S. Paulo diz que é já hora de despertarmos, porque está a nossa salvação mais perto do que presumimos:

Fratres hora est iam nos de somno surgere, nunc enim propior est nostra salus, quam cum credidimus.

Que parecia que o mesmo Deus nos estava dizendo que era já chegada aquela felice hora que ele prometera a el-rei D. Afonso Henriques. Deu-se enfim o ponto para as nove horas da menhã, e deu-se ordem a todos para que, poucos a poucos, por vários caminhos, se ajuntassem no terreiro do Paço, o que se fez com recato e boa disposição, que uns em coches, outros a cavalo, outros a pé se dividiram em troços por todo aquele espaço que há desd’ o Arco dos Pregos até o Arco do Ouro. Andava já o segredo tão público, que o dia de antes ũa criada de D. Antão de Almada mandou um negro a casa de certa senhora cujo marido estava persiguido e preso por Miguel de Vasconcelos, e despois de estar o negro no pátio veio ela a ũa veranda e com muito desenfado lhe advertiu em alta e inteligível voz que dixesse àquela senhora que se não agastasse, que amenhã havia de ir o senhor D. Antão de Almada com outros fidalgos a matar ao secretário e a soltar ao senhor seu marido. E D. António Mascarenhas, encontrando no claustro de São Francisco de Enxobregas a Miguel de Vasconcelos, passou por ele sem lhe tirar o chapéu, e perguntando-lhe alguns fidalgos e alguns religiosos do mesmo convento porque não falava ao secretário, respondeu que entendia que era espécie de treição fazer cortesia a um homem a quem ele sabia de certo que havia de tirar a vida.

Também o doutor João Pinto Ribeiro, quando esta prodigiosa menhã veio de sua casa à porta da capela a esperar que se juntassem os fidalgos, encontrou no caminho um dos amigos a quem ele havia convidado sem lhe dizer o para quê, o qual, como andava desejoso de saber este segredo, lhe rogou que lhe dixesse aonde iam, e ele lhe respondeu: «− Não é nada; imos aqui abaxo até a sala dos tudescos a tirar um rei e pôr outro, e logo nos tornamos para casa.». Mas nenhũa cousa houve de tanto assombro − em razão de andar o segredo já na praça − como haver, naquela mesma hora em que o conflito estava próximo, quem − sem saber nada do que se preparava − entrou na Secretaria e avisou a Miguel de Vasconcelos, amoestando-o que se saísse lá por aquela porta do forte que olha para o mar, e que sem demora se metesse na sua gôndola e se passasse à outra banda. Porém já neste tempo, depois de estarem unidos e resolutos, pouco importava que o segredo se não observasse com todo o rigor, porque uma vez chegado o intento àqueles termos, não podia deixar de ter efeito, quanto mais que, se era decreto de Deus, que Portugal restaurasse a perdida liberdade, que descuido, que estorvo ou que embaraço podia haver que lhe fizesse impedimento?

Neste comenos deu o relógio do Paço nove horas, e como quando o fogo de ũa mina atea na pólvora e saem num mesmo instante por várias aberturas da terra − em cópia larga, com medonho ímpeto − mil raios e mil despedaçados e abrasadores mármores, assi feros, assi terríveis e assi furiosos saíram num mesmo tempo alguns fidalgos dos coches, e logo foram em seu siguimento com a mesma deliberação os mais que, a cavalo, ou a pé, vinham para aquele efeito. Subiram todos intrépidos por ũa e outra escada do Paço, já com as armas prontas, e dispostos para ver a cara ao mais estupendo transe em que desde que hove guerras no mundo se viu o coração humano.

Felice Aclamação, ff. 13-16 (ed. Evelina Verdelho)

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