Uma das cartas mais divertidas da Correspondência de Fradique Mendes, que li no início dos anos 90 numa edição de 1919, comprada num alfarrabista lisboeta, vem-se sempre à memória quando ouço tugas a falar portunhol convencidos de que estão a fazer um brilharete. Lembrei-me dela, por exemplo, quando o Queiroz era treinador do Real Madrid, ou quando o Durão Barroso (a. k. a. José Manuel Barroso) era líder do PSD e berrou apopléctico "Viva Espanha" num comício do Aznar, ou depois da lamentável figura do Sócrates ontem, num comício do PSOE. Neste último caso a releitura da carta teve um efeito catártico, na medida em que me vai permitir votar no PS descansado, sem ser assombrado pela recordação daqueles minutos humilhantes.
Deixo aqui algũs excerptos, na orthographia original, para os resistentes ao accordo orthographico (nos quaes, como se sabe, nam me incluo).
Deixo aqui algũs excerptos, na orthographia original, para os resistentes ao accordo orthographico (nos quaes, como se sabe, nam me incluo).
A MADAME S.
Paris, Fevereiro.
Minha Cara Amiga -- O hespanhol chama-se D. Ramon Covarubia, mora na Passage Saulnier, 12, e como é aragonez, e portanto sobrio, creio que com dez francos por lição se contentará amplamente. Mas se seu filho já sabe o castelhano necessario para entender os Romanceros, o D. Quixote, alguns dos «Piccarescos», vinte paginas de Quevedo, duas comedias de Lope de Vega, um ou outro romance de Galdós, que é tudo quanto basta lêr na litteratura de Hespanha, para que deseja a minha sensata amiga que elle pronuncie esse castelhano que sabe com o accento, o sabor, e o sal d'um madrileno nascido nas veras pedras da Calle-Mayor? Vai assim o dôce Raul desperdiçar o tempo que a Sociedade lhe marcou para adquirir idéas e noções (e a Sociedade a um rapaz da sua fortuna, do seu nome e da sua belleza, apenas concede, para esse abastecimento intelectual, sete anos, dos onze aos dezoito) -- em quê? No luxo de apurar até a um requinte superfino, e superfluo, o mero instrumento de adquirir noções e idéas. Porque as linguas, minha boa amiga, são apenas instrumentos do saber, como instrumentos de lavoura. Consumir energia e vida na aprendizagem de as pronunciar tão genuina e puramente, que pareça que se nasceu dentro de cada uma d'ellas, e que, por meio de cada uma, se pediu o primeiro pão e agua da vida -- é fazer como o lavrador que em vez de se contentar em cavar a terra com um ferro simples encabado n'um pau simples, se applicasse, durante os meses em que a horta tem de ser trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flôres e folhagens ao comprido do pau. Com um hortelão assim, tão miudamente occupado em alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os seus pomares da Touraine?
Um homem só deve fallar, com impeccavel segurança e pureza, a lingua da sua terra: -- todas as outras as deve fallar mal, orgulhosamente mal, com aquele accento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na lingua verdadeiramente reside a nacionalidade; -- e quem fôr possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa vai gradualmente soffrendo uma desnacionalização.
Eça de Queiroz, A correspondencia de Fradique Mendes: memorias e notas. Liv. Chardon, Porto, 1900. pp. 137-139
Portanto o nosso Primeiro-ministro apenas seguiu os conselhos do Eça, e assim provou o seu patriotismo, e eu vou poder votar nele tranquilo, sem que me ecoem nos ouvidos as cacofonias portunhólicas da sua intervenção no comício do PSOE.
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