quarta-feira, junho 22, 2011

Da tradução da poesia


De volta do belíssimo Hino a Eulália de Mérida, de Prudêncio (s. IV-V). Às tantas o latim diz 

curriculis tribus atque nouem
tres hiemes quater attigerat

o que em linguagem quer dizer, mais cousa menos cousa,

três e mais nove anos,
três invernos quatro vezes atingira

Mas o tradutor espanhol da reputada edição da BAC, Alfonso Ortega, acha que é uma maçada conservar o verso (que desperdício de papel, que está tão caro!), e acha que é uma tolice sem sentido esta mania que os poetas, sobretudo os antigos, têm de não dizerem as cousas como elas são. No meu tempo, resmungava Don Alfonso Ortega, Catedrático da Universidade Pontifícia de Salamanca, a minha avó dizia que já era noite, que tinha sono e que ia dormir. Agora estes poetas antigos dizem que já Apolo declinara e Diana refulgia no palatino ebúrneo e Mercúrio me afagava a cabeça com o sonífero caduceu. Tenham a santa paciência! Pelamordedeus! Eu cá é mais pão pão queijo queijo, rosnava do alto da sua cátedra salmaticente.

Mas que raio, pensou Don Alfonso Ortega, enquanto entornava os olhos catedráticos sobre o venerável cartapácio, então se três mais nove, são doze, e se quatro vezes três são doze - é a mesma cousa, pelamordedeus!, então para que é que o homem não disse logo que a santa muchacha tinha 12 anos? Valha-me Santa Eulália! Ora toca lá então a traduzir como deve ser, cogitou o Catedrático, e escarrapachou na página

Doce inviernos había alcanzado a ver ella en el transcurso de otros tantos anõs...

Mainada. Já agora eu sugeria que ele resumisse os 215 versos do hino em uma frase: 

la muchacha tenía doce años y sufrió martirio a manos de Calpurniano, en Mérida. Fin. 

A bem dizer, se é para violar o original e acabar com a poesia, sempre poupa papel e paciência ao pessoal.

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O boneco é de John William Waterhouse (1849-1917), e representa o martírio de Eulália.

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