quarta-feira, junho 01, 2011

Livros cá de casa . XXI


A mania de enxovalhar os títulos originais é antiga, já sabemos. E nem sempre é injustificável. Há casos em que expressões idiomáticas ou referências datadas ou específicas de uma nação poderiam tornar o título incompreensível, se traduzido à letra. Assim de repente, imagino que seja difícil traduzir à letra o "Fado Alexandrino" do Lobo Antunes. Mas não é que as edições inglesas o mantiveram? E as alemãs também? E os franceses até traduziram à letra o intraduzível "Os cus de Judas"? (*)

Mas há casos que desafiam toda e qualquer tentativa de explicação.

O Pamuk viu o seu "Kara kitap" ("O livro negro") ser travestido em Portugal de "Os jardins da memória". A minha edição, em inglês, achou que não era extravagância nenhuma traduzir o título por "The Black Book". A edição francesa não viu mal nenhum em traduzir por "Le Livre Noir"; e os alemães não tiveram vergonha de traduzir por "Das schwarze Buch"; e os espanhóis, que gostam tanto de nos chatear, lá traduziram por "El libro negro". Mas a Presença achou que era falta de imaginação, e toca de inventar um "Os jardins da memória" que não lembraria (nem lembrou) a mais ninguém.

O Tolstói deve dar voltas no túmulo depois de a sua Крейцерова соната ("Sonata Kreutzer") ter sido assassinada sob a forma de um "Ensaio sobre o ciúme", que devia valer pena de trabalhos comunitários a quem teve esta ideia peregrina. Além de ser um insulto à inteligência, este esventramento do título, quanto a mim condenável só por si, ainda nos priva das óbvias mas indispensáveis referências musicais que encerra.

Além do mais, esta edição tuga teve como vítima colateral o próprio nome do homem, transformado num extraordinário Léon Tolstoi. Eu sei que houve em tempos a tradição de se rebaptizar o pobre Lev Tolstói desta forma, porque se o lia e traduzia a partir do francês. Hoje, no entanto, é uma opção absurda - passe o eufemismo. Se lhes faz comichão o "Lev", então ao menos "Leão". Agora "Léon"? Plamordedeus.

Também o Eco e o Jean-Claude Carrière tiveram o seu recentíssimo "N' espérez pas vous débarasser des livres" / "Non sperate vi liberarvi dei libri" (2009) imaginativamente rebaptizado em Portugal com o inenarrável e inexplicável título "A obsessão do fogo". A edição que tenho, em inglês, não teve medo de traduzir o título como "This is not the end of the book". No Brasil, que continua a dar-nos lições, não acharam que lhes caíam os parentes na lama, e traduziram civilizadamente por "Não contem com o fim do livro". Mas por cá a Difel achou que era um título demasiado aborrecido, e toca de inventar um que não tem nada que ver com o conteúdo do livro, e é mesmo enganador.

Agora vejo que esta edição sem data, mas que por dentro tem uma assinatura do antigo possuidor datada de 1945, fez o mesmo ao Nikolai Gógol, aqui rebaptizado "Nicolau". Mas ao menos neste caso assume-se logo na capa a "liberdade poética", que é como quem diz que já sabemos ao que vamos.

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(*) Em relação a estes problemas recomendo vivamente a hilariante e inteligentíssima carta que o Cavaleiro de Oliveira, do alto do seu século XVIII, escreveu ao Pe. Dom José Augusto, a propósito de um italiano que dizia ser capaz de traduzir qualquer texto português. A carta, destinada a ser então traduzida pelo tal italiano, consiste em 20 páginas (na minha edição) que fazem todo o sentido, mas usando quase exclusivamente expressões idiomáticas portuguesas, com um leit-motiv no fim de cada parágrafo, com a expressão "gostava já de ver essa tradução" e variantes. Sobre isto pode ser que venha a haver um post em breve.

1 comentário:

MariahR disse...

Interessante...também eu interessar-me...:)!