domingo, junho 26, 2011

Sapientia nepotica: theoria da litteratura (II)

A Carolina (5 anos) diz que tem uma amiga chamada Matilde. Eu aplaudi educadamente. Ela talvez tenha percebido o meu pouco entuasiasmo, e acrescentou que sabe o nome completo da amiga: Matilde Rosa Araújo.

Sapientia nepotica: sic itur ad astra (II)


Depois da Carolina, foi a vez de o Manuel (4 anos) me perguntar como é que a gente vai para o céu. Eu respondi da forma mais terrena possível: de avião ou de foguetão. Ele metralhou-me com os olhos e berrou em tom "duh!!!" que não, que queria dizer como é que a gente vai para o céu quando morre. Eu engasguei-me agnosticamente, e gemi um "não sei" em tom "tirem-me daqui". Mas o Manuel já sabe fazer perguntas retóricas, e assim respondeu ele à sua própria pergunta. Segundo a mãe, informou ele catedraticamente, o Jesus vem a voar lá do céu e leva-nos lá para cima. É isso mesmo, suspirei eu. aliviado.

quarta-feira, junho 22, 2011

Da tradução da poesia


De volta do belíssimo Hino a Eulália de Mérida, de Prudêncio (s. IV-V). Às tantas o latim diz 

curriculis tribus atque nouem
tres hiemes quater attigerat

o que em linguagem quer dizer, mais cousa menos cousa,

três e mais nove anos,
três invernos quatro vezes atingira

Mas o tradutor espanhol da reputada edição da BAC, Alfonso Ortega, acha que é uma maçada conservar o verso (que desperdício de papel, que está tão caro!), e acha que é uma tolice sem sentido esta mania que os poetas, sobretudo os antigos, têm de não dizerem as cousas como elas são. No meu tempo, resmungava Don Alfonso Ortega, Catedrático da Universidade Pontifícia de Salamanca, a minha avó dizia que já era noite, que tinha sono e que ia dormir. Agora estes poetas antigos dizem que já Apolo declinara e Diana refulgia no palatino ebúrneo e Mercúrio me afagava a cabeça com o sonífero caduceu. Tenham a santa paciência! Pelamordedeus! Eu cá é mais pão pão queijo queijo, rosnava do alto da sua cátedra salmaticente.

Mas que raio, pensou Don Alfonso Ortega, enquanto entornava os olhos catedráticos sobre o venerável cartapácio, então se três mais nove, são doze, e se quatro vezes três são doze - é a mesma cousa, pelamordedeus!, então para que é que o homem não disse logo que a santa muchacha tinha 12 anos? Valha-me Santa Eulália! Ora toca lá então a traduzir como deve ser, cogitou o Catedrático, e escarrapachou na página

Doce inviernos había alcanzado a ver ella en el transcurso de otros tantos anõs...

Mainada. Já agora eu sugeria que ele resumisse os 215 versos do hino em uma frase: 

la muchacha tenía doce años y sufrió martirio a manos de Calpurniano, en Mérida. Fin. 

A bem dizer, se é para violar o original e acabar com a poesia, sempre poupa papel e paciência ao pessoal.

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O boneco é de John William Waterhouse (1849-1917), e representa o martírio de Eulália.

Livros cá de casa . XXVI

sexta-feira, junho 17, 2011

Sapientia nepotica: sic itur ad astra


Os miúdos andam desconcertantemente obcecados com a morte, como já se tinha percebido com o estranho caso da avó que matou o Fernando Pessoa. A Carolina hoje perguntou como é que as pessoas vão para o céu quando morrem. Pensei em responder que me parecia que a única hipótese de uma pessoa ir para o céu é de avião ou de nave espacial. Mas perante a minha hesitação agnóstica ela atalhou e disse que se calhar desapareciam da terra e apareciam no céu. Eu disse que talvez fosse isso.

quinta-feira, junho 16, 2011

Bloomsday 2011


How had he attempted to remedy this state of comparative ignorance?
Variously. By leaving in a conspicuous place a certain book open at a certain page: by assuming in her, when alluding explanatorily, latent knowledge: by open ridicule in her presence of some absent other’s ignorant lapse.

James Joyce, Ulysses

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Na fotografia: Eduardo Demidenko Sánchez, no Bloomsday de 2009. O Ulysses é meu, achado num alfarrabista.

quarta-feira, junho 15, 2011

Dos pesos e das medidas

Um jornal afecto a um partido, e que está sediado no mesmo edifício em que se encontra a sede local desse partido, oferece-se para recolher votos e enviá-los por correio. Toda a gente parece achar normal. O problema é que não é um partido de uma qualquer República das Bananas. É o PSD, de Portugal.

Se porventura o jornal fosse afecto ao PS e estivesse no mesmo edifício da sede do PS local, caía o Carmo e a Trindade, e montava-se já uma tremenda teoria da conspiração, envolvendo mordaças à liberdade de expressão, conluio para sufocar a oposição, corrupção, máfia e invasão da Terra por extraterrestres. Mas como se trata do PSD, não se passa nada, e convém é esquecer que é para o Passos e o Portas tomarem posse rapidamente.

terça-feira, junho 14, 2011

Livros cá de casa . XXV


"Los dos primeros cuentos de este libro son de índole fantástica. Sólo ocurrieron para siempre en la imaginación. El último, The Sailor's Return, es realista. Esperamos que nunca haya ocurrido, tan verosímil y tan dolorosa es la trama. Estas historias pertenecen al más antiguo de los géneros literarios, la pesadilla"
Jorge Luis Borges, Biblioteca personal.

Livros cá de casa . XXIV . (Re)Leituras de Verão . II

domingo, junho 05, 2011

Sapientia nepotica: Theoria da Litteratura


Há dias a Carolina (5 anos) perguntou-me se eu conhecia o Fernando Pessoa. Eu lá lhe expliquei que bom, quer dizer, conheço o que ele escreveu, ele não, que ele já morreu. Acrescentei que ela própria conhecia o Fernando Pessoa, pois eu já lhe tinha lido alguns poemas dele. Ela lembrou-se e riu. Depois declarou que foi a avó que matou o Fernando Pessoa, no que foi apoiada pelo Manuel (4 anos), que ecoava "foi a avó que o matou, foi a avó". Não consigo imaginar aonde terão eles ido buscar isto. Mas não deixa de ser uma honra, ser filho da mulher que matou o Fernando Pessoa.

Por seu lado, depois de se escarrapachar em cima da minha cada vez menos protuberante barriga, e de me ter barrado a cabeça ("é champô") e as costas ("é protector solar") com areia húmida, o Manuel (4 anos) perguntou quem tinha escrito aqueles poemas que eu estava a ler. Expliquei que não eram poemas, mas pequenas histórias (para ele uma mancha gráfica pequena é um poema). Tratava-se da "Biblioteca personal" do Jorge Luis Borges. Depois de lhe ler um bocadinho, pediu-me que lhe repetisse o nome do senhor que escreveu aquela história. Jorge Luis Borges. Notou que o pai também se chama Jorge. Daí até concluir que o pai se chama não só Jorge, mas Jorge Luis Borges foi um instante. Disse e repetiu, porque parece ter gostado da sonoridade, que o pai se chama Jorge Luis Borges. E não deixa de ser uma honra, ser cunhado do Jorge Luis Borges.

sábado, junho 04, 2011

Livros cá de casa . XXII . (Re)Leituras de Verão . I


O Manuel (4 anos) perguntou-me onde era a loja de livros onde o senhor da capa estava. Depois pediu-me que lhe lesse um bocadinho. Mas acho que não ficou muito comovido.

quarta-feira, junho 01, 2011

Livros cá de casa . XXI


A mania de enxovalhar os títulos originais é antiga, já sabemos. E nem sempre é injustificável. Há casos em que expressões idiomáticas ou referências datadas ou específicas de uma nação poderiam tornar o título incompreensível, se traduzido à letra. Assim de repente, imagino que seja difícil traduzir à letra o "Fado Alexandrino" do Lobo Antunes. Mas não é que as edições inglesas o mantiveram? E as alemãs também? E os franceses até traduziram à letra o intraduzível "Os cus de Judas"? (*)

Mas há casos que desafiam toda e qualquer tentativa de explicação.

O Pamuk viu o seu "Kara kitap" ("O livro negro") ser travestido em Portugal de "Os jardins da memória". A minha edição, em inglês, achou que não era extravagância nenhuma traduzir o título por "The Black Book". A edição francesa não viu mal nenhum em traduzir por "Le Livre Noir"; e os alemães não tiveram vergonha de traduzir por "Das schwarze Buch"; e os espanhóis, que gostam tanto de nos chatear, lá traduziram por "El libro negro". Mas a Presença achou que era falta de imaginação, e toca de inventar um "Os jardins da memória" que não lembraria (nem lembrou) a mais ninguém.

O Tolstói deve dar voltas no túmulo depois de a sua Крейцерова соната ("Sonata Kreutzer") ter sido assassinada sob a forma de um "Ensaio sobre o ciúme", que devia valer pena de trabalhos comunitários a quem teve esta ideia peregrina. Além de ser um insulto à inteligência, este esventramento do título, quanto a mim condenável só por si, ainda nos priva das óbvias mas indispensáveis referências musicais que encerra.

Além do mais, esta edição tuga teve como vítima colateral o próprio nome do homem, transformado num extraordinário Léon Tolstoi. Eu sei que houve em tempos a tradição de se rebaptizar o pobre Lev Tolstói desta forma, porque se o lia e traduzia a partir do francês. Hoje, no entanto, é uma opção absurda - passe o eufemismo. Se lhes faz comichão o "Lev", então ao menos "Leão". Agora "Léon"? Plamordedeus.

Também o Eco e o Jean-Claude Carrière tiveram o seu recentíssimo "N' espérez pas vous débarasser des livres" / "Non sperate vi liberarvi dei libri" (2009) imaginativamente rebaptizado em Portugal com o inenarrável e inexplicável título "A obsessão do fogo". A edição que tenho, em inglês, não teve medo de traduzir o título como "This is not the end of the book". No Brasil, que continua a dar-nos lições, não acharam que lhes caíam os parentes na lama, e traduziram civilizadamente por "Não contem com o fim do livro". Mas por cá a Difel achou que era um título demasiado aborrecido, e toca de inventar um que não tem nada que ver com o conteúdo do livro, e é mesmo enganador.

Agora vejo que esta edição sem data, mas que por dentro tem uma assinatura do antigo possuidor datada de 1945, fez o mesmo ao Nikolai Gógol, aqui rebaptizado "Nicolau". Mas ao menos neste caso assume-se logo na capa a "liberdade poética", que é como quem diz que já sabemos ao que vamos.

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(*) Em relação a estes problemas recomendo vivamente a hilariante e inteligentíssima carta que o Cavaleiro de Oliveira, do alto do seu século XVIII, escreveu ao Pe. Dom José Augusto, a propósito de um italiano que dizia ser capaz de traduzir qualquer texto português. A carta, destinada a ser então traduzida pelo tal italiano, consiste em 20 páginas (na minha edição) que fazem todo o sentido, mas usando quase exclusivamente expressões idiomáticas portuguesas, com um leit-motiv no fim de cada parágrafo, com a expressão "gostava já de ver essa tradução" e variantes. Sobre isto pode ser que venha a haver um post em breve.