quinta-feira, abril 02, 2009

O macho


Já todos vimos - pelos menos nós, os que vemos coisas interessantes na TV - aquelas imagens de bandos de leões depois da caça: o macho dominante afocinha na barriga da zebra, enfarda até arrotar de fastio, e depois permite que as fêmeas, os machos ainda adolescentes e as crias comam o que sobrou. À volta, os abutres esperam que os leões se retirem, para, por sua vez, debicarem ossos, peles e os restos de tripas deixados.

Eu, a quem a natureza não deu atributos que me façam sobressair dos outros machos no que realmente interessa, sempre tive muita inveja destes leões dominadores. Sempre achei que não teria nunca o prazer de sujeitar machos rivais a terem de esperar pelos meus restos. Aliás, nunca achei que poderia ter machos rivais. Sempre achei que me estaria eternamente reservado o papel do macho de categoria inferior (e, nos piores pesadelos, de fêmea), no que toca aos despojos seja do que for. Até que, quem sabe fruto da velhice que não perdoa, comecei a acordar cedo, e a ir debicar a dose matinal de cafeína no café aqui do prédio.

A ideia é enfardar o cafezinho (não, não leva acento), mas também rebolar os olhos pelo jornal desportivo do dia. Dantes, quando me arrastava escadas abaixo já a meio da tarde e me entornava sem forças no balcão, na melhor das hipóteses encontrava o jornal já amarrotado e babado de dezenas de dedos lambuzados que o tinham desflorado ao longo da manhã. Já toda a gente o tinha lido, menos eu. Ossos e pele!

Agora apanho-o ainda rijinho (no pun intended), virgem ou quase. E agora acontece.

Agora acontece. Ainda agora aconteceu. Enquanto patinava os olhos pelas páginas do Record, notei nas mesas à minha volta os olhares invejosos de uns quantos machos. Perdi há décadas as ilusões de que essa inveja possa ser de alguma forma freudiana. Portanto tem de ser do jornal. De ser eu, nem que seja por minutos, o macho dominante do café. Ou pelo menos um dos de categoria superior. Eu não sou esquisito, satisfaço-me com pouco. O ar impaciente enquanto viro as páginas pachorrentas. Os olhares de coito interrompido quando pretendo ter acabado mas ainda me detenho, afinal, na inútil última página, fingindo ler não sei o quê. E depois quando o dobro e pouso perto de mim. Os primeiros movimentos nervosos dos machos inferiores (oh, que prazer poder dizê-lo), os rabos que hesitam a meio caminho entre o levantar e o ficar sentado. Os olhares trocados a aferir da categoria de cada um, para ver quem tem direito aos meus restos em primeiro lugar.

Depois levanto-me, vomitando olhares de desprezo pelo café. E há um ou dois ou três machos inferiores (ui!!!) que se levantam hesitantes, e de repente aceleram em direcção à minha mesa, e disputam o que resta da minha leitura matinal.

Assim é que se começa bem o dia. Até porque daqui a pouco vou para o ginásio, depois o duche no balneário, e lá se vai toda esta ilusão de macho superior.