sábado, junho 20, 2009

Marcha Pride Lisboa, 1578


Hoje decorre em Lisboa mais uma marcha do orgulho gay. Eu, que saí do armário há duas décadas, continuo sem perceber o que há nisto para se ter orgulho. Ou vergonha. Enquanto a homossexualidade continuar a ser encarada, de dentro, desta maneira, não há qualquer esperança de vir a ser encarada, de fora, com a naturalidade que se pretende. Até lá, enquanto estes homossexuais continuarem a não encarar a sua orientação com a mesma naturalidade com que encaram a dimensão da sua barriga ou a cor dos seus olhos, até lá estas marchas continuarão a fazer o seu papel de perpetuação de estereótipos e de progressivo afastamento entre esta "comunidade gay" e o resto da sociedade, outros homossexuais incluídos.

Mas esta reflexão ensonada vem a propósito de outra marcha igualmente amaricada, há 431 anos, e de consequências não menos lamentáveis: foi num Sábado, dia 14 de Junho de 1578, e preparava-se a partida das tropas portuguesas para Alcácer Quibir. Transcrevo, a partir da edição de António Sérgio, um excerto de um relato da época, de alguém que viu a mariquice toda (modernizei a ortografia):

Neste Sábado, a 14 de Junho, foi el-Rei dos paços da Ribeira à Sé a benzer a bandeira real. Tanto que amanheceu, começaram a correr os fidalgos para o acompanharem: e parece que à porfia trabalharam por ir cada um mais galante e custoso. Coisa que espantou muitas gentes, ver como iam ricamente vestidos; porque, se a matéria dos vestidos era rica, a obra, feitios e invenções de mais rica sobejava: porque tudo era brocado, tela de ouro e prata, tecidos de seda mui custosos. Os veludos, damascos, todas as mais sedas perderam sua valia, e se alguma tinham era pelos muitos passamanes, rendilhas, espiguilhas, torchados e alamares de ouro, que lhe punham; mas tudo isto era de pouco gasto em comparação dos feitios, que estes destruíram os homens.

Além disto, foi espanto ver a muita pedraria que neste dia saiu; os botões de ouro, as tranças dos chapéus cheias de rubis, diamantes, esmeralda de preço infinito, entresachadas a compasso umas com as outras; os camafeus, medalhas, estampas de feitio singular; as cadeias de ouro grossíssimas aos pescoços, de dez e doze voltas, as couras borladas de ouro com botões de ouro, cristal, pedras, e demais pedraria; os gibões e coletes sobre telilha de ouro, com invenção de corte pique pesponto maravilhoso; os capotes de damasco, setim, chamalote de seda bandados com barras de veludo e torçais de ouro.

(...)

Nem era menos para ver como os fidalgos vestiram todos sua gente, uns de grã, outros de raxa de mescla de tamete, e isto assim a escudeiros e pajens como a lacaios e escravos, cada um de sua libré de suas cores; e alguns os vestiram de calças e gibões de seda da cor da sua librea, com meias de agulha, de seda.

Enfim foram os fidalgos esperar a el-Rei à sala, e de aí desceram com ele até cavalgar. Estava a este tempo o Terreiro do Paço, que é um espaço grande, muito cheio de gente, que não havia poder andar; e além disso era para ver estarem as libreas de dez em dez homens pegando nos cavalos de seus senhores, de cores diferentes todos, com muitas plumas aos pescoços, com borlas de ouro e seda, que faziam o campo esmaltado de diversas boninas.

Anónimo, Relação da jornada.
Edição de António Sérgio (1924), pp. 45-46

Aposto que hoje também vai estar o campo esmaltado de diversas boninas, em Lisboa.

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