O dia de Corpo de Deus, feriado móvel cristão neste país laico, foi hoje. Ter-me-ia passado ao lado, não fosse ter notado as lojas fechadas. No ano de 1647, em Lisboa, o dia de Corpo de Deus teve todos os condimentos para ser muito mais animado.
Passavam menos de 7 anos da revolta que pôs fim à união dinástica que juntou os reinos de Portugal e Castela em 1580, e a guerra contra Filipe IV fazia-se no campo de batalha, mas sobretudo, nesta década de 40, no campo diplomático. Importava sobretudo aos Braganças ter o reconhecimento da Santa Sé, que, ontem como hoje, preferia jogar pelo seguro, de preferência alinhando com o lado mais forte. E o lado mais forte era, sem dúvida, Castela, ainda que acossada em várias frentes, no contexto da Guerra dos 30 Anos - sem a qual, como reconhecia Vieira logo em 1642, a Restauração seria impossível (1). Interessava, pois, ao partido português qualquer pretexto que deslustrasse a ortodoxia do Rei Católico.
A ocasião apresentou-se, alegadamente, no dia 20 de Junho de 1647, dia de Corpo de Deus. O rei D. João IV ia na procissão, que percorria a actual baixa pombalina, e passava ali mais ou menos onde é hoje a Rua dos Fanqueiros. A procissão deve ter sido bonita. As procissões costumam ser bonitas, sobretudo as barrocas. Mas aparentemente foi apenas mais uma procissão, ainda que barroca. Não foi senão em Julho que se revelou que por pouco não entrou essa procissão do Corpo de Deus de 1647 para a História, pelas piores razões.
A história, inexplicavelmente ignorada pela historiografia do século XX, mas que no século XIX ainda era tão conhecida que Camilo lhe dedicou um romance com duas sequelas (2), conta-se rapidamente. Domingos Leite Pereira, alegadamente a soldo de Filipe IV, ter-se-ia emboscado numas casas, cujas paredes derrubou para ficar com vista para os dois lados da rua, ali para a zona da actual Rua dos Fanqueiros. Não é que lhe interessasse ter uma boa vista por causa da beleza da procissão. Armado de uma escopeta, cujas balas tinham sido banhadas em veneno, o seu objectivo era, ao que parece, atingir D. João IV, de modo a acabar com a rebelião portuguesa, e fazer regressar a coroa de Portugal aos domínios dos Áustrias de Madrid. Não chegou, porém, sequer a disparar. Terá dito, nos interrogatórios a que poucos meses depois foi sujeito, que a visão de uma majestade divina sobre o rei lhe tinha paralisado os membros, e que tinha gritado louvores ao Bragança. Que nem ginjas, para a propaganda do Quinto Império.
Domingos Leite Pereira terá então fugido para Madrid, onde alegadamente terá prometido a Filipe IV que tentaria de novo - e aqui não bate a bota com a perdigota: então se a criatura viu a tal majestade divina sobre o rei e lhe entoou louvores, então porque raio resolve que afinal vai tentar matar o homem de novo, o tal a quem entoou louvores e que viu ser protegido pelo seu Deus? Bom, mas é assim que reza a crónica oficial, e quem sou eu para contrariar Frei Francisco Brandão. (o Camilo arranjou uma versão muito melhor, mas o Camilo é o Camilo, eu sou eu).
Seja como for, em finais de Julho de 1647 Domingos Leite Pereira está de novo em Portugal, alegadamente para tentar matar D. João IV, outra vez. A tentativa não passa disso mesmo. Traído pelo companheiro, Roque da Cunha, é preso no dia 31 de Julho de 1647. Parece que confessou logo tudo, inclusive a história da majestade divina, que tão bem aproveitada seria pela propaganda do Quinto Império. Foram encontradas no lugar do crime que não aconteceu a escopeta e as balas embebidas em veneno. O que é muito conveniente, e revelador de que o moço era bastante distraído. Como a justiça naqueles tempos era célere, talvez demasiado célere, foi executado com requintes de crueldade no dia 21 de Agosto de 1647, apenas 2 meses depois do crime que não chegou a cometer.
Os teóricos do Quinto Império não perderam tempo, vendo na tal visão da majestade divina sobre D. João IV um sinal da preferência de Deus pelo partido português. De resto achavam já desde há muito tempo muitas evidências disso, e até pessoas seriíssimas como o Padre António Vieira escreveram longamente sobre o assunto (3).
Mas isto caiu que nem ginjas também para a guerra diplomática que se travava na Santa Sé, tendo em vista o reconhecimento do Duque de Bragança como novo e legítimo rei de Portugal (o que só veio a acontecer já depois da paz com Espanha de 1668). Uns mais entusiásticos, outros mais racionais, todos os textos portugueses contemporâneos insistiram num ponto essencial: o Rei Católico, ao ter ordenado o assassínio em plena procissão do Corpo de Deus, cometia sacrilégio. Por outro lado, D. João IV, tendo escapado, protegido na procissão por intervenção divina, como o próprio regicida frustrado teria admitido nos interrogatórios, revelara ter Deus do seu lado. Assim, apenas restava à Santa Sé deixar-se de coisas, e dignar-se receber os embaixadores portugueses, prover os bispados, e assim reconhecer de facto a nova dinastia reinante em Lisboa. A Santa Sé, porém, não se comoveu com tanta conveniência junta, e só veio a reconhecer os Braganças três décadas depois de 1º de Dezembro.
A crónica oficial do acontecimento saiu logo em 1647, e é uma delícia propagandística. Recomendo vivamente os passos em discurso directo, sobretudo os atribuídos a D. João IV.
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(1) "Se Portugal se levantara enquanto Castela estava vitoriosa, ou, quando menos, enquanto estava pacífica, segundo o miserável estado em que nos tinham posto, era a empresa mui arriscada. eram os dias críticos e perigosos; mas como a Providência Divina cuidava tão particularmente de nosso bem, por isso ordenou que se dilatasse nossa restauração tanto tempo, e que se esperasse a ocasião oportuna do ano de quarenta, em que Castela estava tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora; para que, na diversão de suas impossibilidades, se lograsse mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio, mas segurou-se o perigo. Quando os Filisteus se quiseram levantar contra Sansão, aguardaram a que Dalila lhe tivesse presas e atadas as mãos, e então deram sobre ele. Assim o fizeram os Portugueses bem advertidos. Aguardaram a que Catalunha atasse as mãos ao Sansão que os oprimia, e como o tiveram assim embaraçado e preso. então se levantaram contra ele tão oportuna como venturosamente." Padre António Vieira, Sermão dos Bons Anos, Janeiro de 1642.
(2) "O regicida", "A filha do regicida", "A caveira da mártir". Embora só o primeiro diga respeito ao não-acontecimento de 20 de Junho de 1647, os dois últimos dependem dele na sua construção.
(3) De resto o nosso actual Presidente da República, que já nos exortou a todos a seguir as recomendações do Padre António Vieira na História do Futuro, parece querer continuar a segurar a chama do Quinto Império, e não na sua versão inócua e muito incompleta, que é a mais conhecida: como as recomendações de Vieira vão no sentido de reconhecer que os portugueses são o novo povo eleito de Deus e que deverão esmagar os espanhóis, eu espera francamente que o Presidente nunca tenha lido o livro e que se tenha limitado a regurgitar o que algum assessor lhe passou para as mãos.
Passavam menos de 7 anos da revolta que pôs fim à união dinástica que juntou os reinos de Portugal e Castela em 1580, e a guerra contra Filipe IV fazia-se no campo de batalha, mas sobretudo, nesta década de 40, no campo diplomático. Importava sobretudo aos Braganças ter o reconhecimento da Santa Sé, que, ontem como hoje, preferia jogar pelo seguro, de preferência alinhando com o lado mais forte. E o lado mais forte era, sem dúvida, Castela, ainda que acossada em várias frentes, no contexto da Guerra dos 30 Anos - sem a qual, como reconhecia Vieira logo em 1642, a Restauração seria impossível (1). Interessava, pois, ao partido português qualquer pretexto que deslustrasse a ortodoxia do Rei Católico.
A ocasião apresentou-se, alegadamente, no dia 20 de Junho de 1647, dia de Corpo de Deus. O rei D. João IV ia na procissão, que percorria a actual baixa pombalina, e passava ali mais ou menos onde é hoje a Rua dos Fanqueiros. A procissão deve ter sido bonita. As procissões costumam ser bonitas, sobretudo as barrocas. Mas aparentemente foi apenas mais uma procissão, ainda que barroca. Não foi senão em Julho que se revelou que por pouco não entrou essa procissão do Corpo de Deus de 1647 para a História, pelas piores razões.
A história, inexplicavelmente ignorada pela historiografia do século XX, mas que no século XIX ainda era tão conhecida que Camilo lhe dedicou um romance com duas sequelas (2), conta-se rapidamente. Domingos Leite Pereira, alegadamente a soldo de Filipe IV, ter-se-ia emboscado numas casas, cujas paredes derrubou para ficar com vista para os dois lados da rua, ali para a zona da actual Rua dos Fanqueiros. Não é que lhe interessasse ter uma boa vista por causa da beleza da procissão. Armado de uma escopeta, cujas balas tinham sido banhadas em veneno, o seu objectivo era, ao que parece, atingir D. João IV, de modo a acabar com a rebelião portuguesa, e fazer regressar a coroa de Portugal aos domínios dos Áustrias de Madrid. Não chegou, porém, sequer a disparar. Terá dito, nos interrogatórios a que poucos meses depois foi sujeito, que a visão de uma majestade divina sobre o rei lhe tinha paralisado os membros, e que tinha gritado louvores ao Bragança. Que nem ginjas, para a propaganda do Quinto Império.
Domingos Leite Pereira terá então fugido para Madrid, onde alegadamente terá prometido a Filipe IV que tentaria de novo - e aqui não bate a bota com a perdigota: então se a criatura viu a tal majestade divina sobre o rei e lhe entoou louvores, então porque raio resolve que afinal vai tentar matar o homem de novo, o tal a quem entoou louvores e que viu ser protegido pelo seu Deus? Bom, mas é assim que reza a crónica oficial, e quem sou eu para contrariar Frei Francisco Brandão. (o Camilo arranjou uma versão muito melhor, mas o Camilo é o Camilo, eu sou eu).
Seja como for, em finais de Julho de 1647 Domingos Leite Pereira está de novo em Portugal, alegadamente para tentar matar D. João IV, outra vez. A tentativa não passa disso mesmo. Traído pelo companheiro, Roque da Cunha, é preso no dia 31 de Julho de 1647. Parece que confessou logo tudo, inclusive a história da majestade divina, que tão bem aproveitada seria pela propaganda do Quinto Império. Foram encontradas no lugar do crime que não aconteceu a escopeta e as balas embebidas em veneno. O que é muito conveniente, e revelador de que o moço era bastante distraído. Como a justiça naqueles tempos era célere, talvez demasiado célere, foi executado com requintes de crueldade no dia 21 de Agosto de 1647, apenas 2 meses depois do crime que não chegou a cometer.
Os teóricos do Quinto Império não perderam tempo, vendo na tal visão da majestade divina sobre D. João IV um sinal da preferência de Deus pelo partido português. De resto achavam já desde há muito tempo muitas evidências disso, e até pessoas seriíssimas como o Padre António Vieira escreveram longamente sobre o assunto (3).
Mas isto caiu que nem ginjas também para a guerra diplomática que se travava na Santa Sé, tendo em vista o reconhecimento do Duque de Bragança como novo e legítimo rei de Portugal (o que só veio a acontecer já depois da paz com Espanha de 1668). Uns mais entusiásticos, outros mais racionais, todos os textos portugueses contemporâneos insistiram num ponto essencial: o Rei Católico, ao ter ordenado o assassínio em plena procissão do Corpo de Deus, cometia sacrilégio. Por outro lado, D. João IV, tendo escapado, protegido na procissão por intervenção divina, como o próprio regicida frustrado teria admitido nos interrogatórios, revelara ter Deus do seu lado. Assim, apenas restava à Santa Sé deixar-se de coisas, e dignar-se receber os embaixadores portugueses, prover os bispados, e assim reconhecer de facto a nova dinastia reinante em Lisboa. A Santa Sé, porém, não se comoveu com tanta conveniência junta, e só veio a reconhecer os Braganças três décadas depois de 1º de Dezembro.
A crónica oficial do acontecimento saiu logo em 1647, e é uma delícia propagandística. Recomendo vivamente os passos em discurso directo, sobretudo os atribuídos a D. João IV.
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(1) "Se Portugal se levantara enquanto Castela estava vitoriosa, ou, quando menos, enquanto estava pacífica, segundo o miserável estado em que nos tinham posto, era a empresa mui arriscada. eram os dias críticos e perigosos; mas como a Providência Divina cuidava tão particularmente de nosso bem, por isso ordenou que se dilatasse nossa restauração tanto tempo, e que se esperasse a ocasião oportuna do ano de quarenta, em que Castela estava tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora; para que, na diversão de suas impossibilidades, se lograsse mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio, mas segurou-se o perigo. Quando os Filisteus se quiseram levantar contra Sansão, aguardaram a que Dalila lhe tivesse presas e atadas as mãos, e então deram sobre ele. Assim o fizeram os Portugueses bem advertidos. Aguardaram a que Catalunha atasse as mãos ao Sansão que os oprimia, e como o tiveram assim embaraçado e preso. então se levantaram contra ele tão oportuna como venturosamente." Padre António Vieira, Sermão dos Bons Anos, Janeiro de 1642.
(2) "O regicida", "A filha do regicida", "A caveira da mártir". Embora só o primeiro diga respeito ao não-acontecimento de 20 de Junho de 1647, os dois últimos dependem dele na sua construção.
(3) De resto o nosso actual Presidente da República, que já nos exortou a todos a seguir as recomendações do Padre António Vieira na História do Futuro, parece querer continuar a segurar a chama do Quinto Império, e não na sua versão inócua e muito incompleta, que é a mais conhecida: como as recomendações de Vieira vão no sentido de reconhecer que os portugueses são o novo povo eleito de Deus e que deverão esmagar os espanhóis, eu espera francamente que o Presidente nunca tenha lido o livro e que se tenha limitado a regurgitar o que algum assessor lhe passou para as mãos.
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