Na Pública da semana passada, Simone de Oliveira diz que não concorda com o acordo ortográfico, e que vai continuar a *falar* como sempre falou. O que é como se alguém dissesse que não gosta de couves de bruxelas, pois prefere Beethoven.
Se se tivesse dado ao trabalho de se informar um bocadinho, a Simone saberia que é precisamente o inverso: o novo acordo procura aproximar mais a escrita da fala, eliminando letras que só servem para enfeitar. E não me venham com a etimologia, que se assim fosse então teríamos de escrever "instrucção", já sem falar de consoantes dobradas, "y" e quejandos: o "c" de "acção" faz tanta falta como o "p" de "esculptura". E não, não, não abre vogal nenhuma, não só porque isso seria um absurdo, do ponto de vista da nossa tradição ortográfica, mas sobretudo porque o que não falta na nossa escrita são pretónicas abertas sem necessidade de penduricalhos obsoletos, como "inflação", "corar", "pregador", "pegada", "colação", etc. - um enorme etc. Por outro lado, não são poucas as palavras com penduricalho que não só não se pronuncia, como não abre vogal nenhuma, como "actuar" e "actriz", só para mencionar duas palavras de utilização frequente. E não, não há nenhuma incongruência na alteração de radical de palavras da mesma família, como já ouvi argumentar, a propósito do par "Egito"/"Egípcio": já acontece em muitas palavras, como o par "esculpir" / "escultura" (que já se escreveu "esculptura", e ninguém morreu por cair o "p").
E não se pense que sou contra a conservação de vestígios etimológicos na escrita: pelo contrário, nem que seja pela minha formação, sou um adepto incondicional da escrita etimológica. O que acho é que das duas uma: ou se opta por uma escrita etimológica, à maneira francesa ou grega, ou se avança para uma escrita fonética, à maneira italiana. Este nem carne nem peixe que é a nossa ortografia é que não.
A afirmação da cantante Simone revela, portanto, que, salvo raras e honrosas exceções, os ataques ao acordo ortográfico são geralmente desprovidos de qualquer sentido, pois misturam duas coisas que pouco têm que ver: a língua, com a sua gramática, e a escrita, que não passa de uma convenção extralinguística, mais política do que outra coisa.
A oposição ao acordo, com notáveis e poucas exceções, faz-se valer mais da emoção do que da razão: é-se contra o acordo porque sim, porque não se gosta. Mesmo quando se trata de pessoas tão cultas e dotadas de inteligência superior, como o Eduardo Lourenço, que afirma sem corar que vai continuar a escrever como foi alfabetizado. O que quer dizer que, tendo em conta a sua idade e a altura em que foi alfabetizado, continuará a escrever "êle", "flôr", "mãi", "quasi", e outras coisas do mesmo género.
N.B.: texto escrito de acordo com o acordo, tendo sido necessário mudar apenas uma palavra.