segunda-feira, março 17, 2008

O herdeiro


Talvez pouco satisfeito com o facto de eu ter designado, provisoriamente, a irmã como herdeira da minha biblioteca pessoal, o Manuel, anteontem, decidiu arrancar das estantes que conseguia alcançar praticamente toda a secção "L" - "M" do armário principal dos autores de ficção estrangeiros. Não sei como o fez tão rapidamente, ainda são umas dezenas. E isto enquanto eu fazia um regalado chichi. Descansado com o facto de não ter no escritório nenhum objecto ao seu alcance susceptível de ser engolido ou de lhe cair em cima, achei que 20 ou 30 segundos (eu disse que era regalado) não iriam fazer a diferença. Mas fizeram. Quando regressei ao escritório tinha o Llosa à bulha com o Mahfouz e o Malouf, o McEwan em cima da McCullough, perante o olhar indignado do Melville, tudo numa grande rebaldaria que me tapava a maior parte do chão do escritório. Na mão o Manuel brandia Edward Lear. Não que seja admirador de "nonsense", suponho, mas porque é um livro que, fortemente orientado na horizontal, se destaca na estante, facilmente agarrável. Não existe, eu sei.

Mas o meu sobrinho pode estar descansado, não ficará de mãos a abanar quando eu finalmente me vir livre do pessoal todo e das maçadas diárias.

Ainda que não de forma tão premente como a minha biblioteca pessoal, a minha colecção de CD e DVD de música antiga e clássica também anda à procura de herdeiro há largos anos. Se com a biblioteca o problema é mais logístico, pois, como podem testemunhar as paredes da minha casa, arranjar espaço para alguns milhares de livros não é fácil, o problema das centenas de CD, que até cabem em 3 prateleiras maneirinhas, é sobretudo emocional. Se por um imprevisível golpe de sorte eu morresse em breve, a biblioteca ficaria sempre bem entregue: o meu irmão não gosta muito de ler, é verdade, mas a minha mãe e a minha irmã não desdenhariam a herança. Com os CD já não é bem assim. Os meus irmãos abominam, assumida e orgulhosamente (embora eu não consiga entender como é possível) qualquer tipo de música erudita. A minha mãe gosta de música clássica (no verdadeiro sentido da palavra), mas não alinha muito na barroca, menos ainda na antiga. Ora eu clássicos e românticos, a bem dizer, tenho três ou quatro Mozarts e Bomtempos, e mais uma coisita ou outra que me têm oferecido. Depois são cerca de 300 barrocos e antigos.

Há umas semanas, estando com a Carolina no carro, pus no leitor um CD de motetes polifónicos, salvo erro do Francisco Guerrero. A miúda fez uma careta e gritou "DESLIGA!". Eu obedeci, contristado. Afinal, como se pode dizer não àqueles caracóis furiosos? "Desliguei" o CD, é certo, mas não me rendi: liguei o rádio, na Antena 2, como é mais do que óbvio. Fi-lo com um sorriso triunfante, pensando "achavas que vencias", que imediatamente se desfez: estava a dar um programa de jazz. Mais vencido me senti quando a Carolina, com pequenos gritinhos de alegria, começou a dançar ao som daquele música infernal. Não herdas os meus CD, pensei. Contei à mãe, que replicou "pudera, ela em casa não ouve porcarias dessas". Tu também não herdas nada.

Mais recentemente tive uma primeira pequena alegria. Tendo ido buscar o Manuel à creche, achei que me apetecia ouvir o Gloria da Missa em Si Menor de Bach. Sobretudo tinha a certeza de que não ia ouvir nenhum "DESLIGA" irado, pois o Manuel ainda não fala. Do que eu não estava à espera era de o ver dançar na cadeirinha ao som de Bach, com um sorriso daqueles que só as crianças pequeninas conseguem abrir. Não muito depois caiu-me em sorte ter de o adormecer, o que se foi revelando tarefa muito complicada, até que, em desespero, resolvi murmurar uma melodia barroca. Em vez do colérico "NÃO CANTA" com que a Carolina me presenteia sempre que cometo a imprudência de começar a cantar-lhe alguma coisa, o Manuel adormeceu em poucos minutos.

Ainda a recuperar do incidente relatado no primeiro parágrafo, anteontem decidi repetir a dose, com variações. Ainda que não seja grande fã da ópera clássica (mas quem me tira a barroca...), pus a correr no DVD a Flauta Mágica, na esperança de que o miúdo se interessasse pelos fatos coloridos. A coisa funcionou muito bem. Sobretudo quando lhe pus a ária da Rainha da Noite. Não sei se lhe lembrou os ralhetes da mãe, se as fúrias da irmã. A verdade é que o Manuel ficou preso à televisão, enquanto a ária ia passando e repassando (eu gosto muito daquela ária, que querem que lhes diga). Curiosamente não achou tanta graça ao célebre encontro final de Papageno e Papagena, mas ficou verdadeiramente entusiasmado com o grande final, aplaudindo em delírio. Portanto aqui fica escrito: se entretanto a mãe e o pai não o desviarem do bom caminho, o Manuel herda a minha colecção de CD e DVD. Que, à cautela, vou colocar fora do alcance da Carolina.

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