terça-feira, dezembro 28, 2010

Uma antena, por favor

A propósito da polémica que estalou por causa do ataque à liberdade de expressão por parte da ensitel, empresa que, depois disto, nunca verá um cêntimo meu, lembrei-me de um caso que aconteceu comigo há uns anos.

Tendo comprado um Alcatel numa loja TMN, na altura em que os telemóveis serviam para telefonar e tinham antenas externas, a dita cuja antena um belo dia deu-lhe para se descolar e cair. Dirigi-me à loja da TMN que então havia na Av. da República (Lisboa), e pedi que me pusessem uma antena nova. Dispus-me logo a pagar o arranjo, visto que imaginei que a garantia não cobrisse um acidente deste tipo. Que sim senhor, que me prantavam já uma antena nova no bicho, que esperasse só uns minutos.

Passados os prometidos minutos, voltou-me o telemóvel sem antena. A menina, penalizada, disse-me que os técnicos tinham achado "humidades" no telemóvel, e que por isso não podiam atarrachar a antena nova. Perplexo e sem entender o que tinha uma cousa que ver com a outra, protestei. Que era política da empresa, e que o próprio fabricante proibia terminantemente qualquer intervenção em telemóveis "com humidades". Vomitei a minha ira no livro de reclamações, mas não desisti.

Dirigi-me então à fábrica da Alcatel, nos arredores de Lisboa, e pedi pelamordedeus que me pespegassem a maldita antena no telemóvel. O rapaz que me atendeu não percebeu a minha ânsia, nem quis saber de "humidades". Pegou numa antena nova, e, à minha frente, lá a prantou no couso. Perguntei quanto era, respondeu que não era nada e foi à sua vida.

Resolvi fazer nova queixa da TMN, agora armado com esta inesperada ajuda da Alcatel. Fui ao Instituto do Consumidor, e expus o caso. Passadas algumas semanas, veio a resposta da TMN. Diziam que não havia prova de que na Alcatel me tivessem prantado efectivamente a antena, e que por isso partiam do princípio de que não tinha acontecido o que eu narrara. Ou seja, chamavam-me mentiroso.

Ainda pensei levar a cousa mais adiante. Mas depois lembrei-me de que, como o rapaz da Alcatel não me tinha cobrado nada, a verdade é que realmente eu não tinha provas do que dizia. Portanto amochei. Mas nunca mais comprei nada em lojas TMN. Já lá vão uns bons 10 anos.

sábado, dezembro 18, 2010

Perguntas difíceis

A Carolina (5 anos) olhou para a minha cama vazia e perguntou se eu dormia sozinho. Eu respondi que sim, e ele atacou de novo. Quis saber se eu não me sentia sozinho. Estive para responder que dava todos os dias graças aos deuses, ao levantar e ao deitar e durante o resto do dia, pela bênção que é viver sozinho, mas preferi um politicamente correcto, mesmo se mentiroso, "às vezes".

O Manuel (4 anos) perguntou se o Natal estava a chegar. Eu disse que sim. Ele quis então saber porquê. Eu respondi que era porque o tempo passa. Ele perguntou porque é que o tempo passa. Respondi que é porque o Sol se põe e se levanta todos os dias. Receei um novo "porquê", mas felizmente um pombo a voar demasiado baixo desviou-lhe a atenção.

sábado, dezembro 04, 2010

Dos futebolistas cansados

Reitero a minha perplexidade. Um jogador de futebol profissional português (só é assim em Portugal) queixa-se de cansaço e de falta de tempo de recuperação quando faz jogos 2 vezes por semana. Os jornais desportivos costumavam fazer a estatística da distância percorrida por jogo. Os jogadores que correm mais (mas só mesmo esses) fazem 9 a 10 km por jogo.

Ora, 9 a 10 km corro eu pelo menos 3 vezes por semana. Esta, por exemplo, foram cerca de 8 na Segunda; cerca de 9 na Quarta; 12 ontem; 15 hoje.  A média é entre os 9,5 e os 10 km/h. Cansaço? Bom, na meia hora seguinte.

Admito, concedo, há muitas diferenças entre um futebolista profissional e eu. Não vou escudar-me atrás disso. 

O futebolista profissional anda na casa dos 20, eu ando já com um pé nos 40. 

O futebolista profissional é profissional, vive só para aquilo, tem por obrigação contratual manter a forma. Eu sou sedentário, vou correr quando arranjo um bocadinho, e só comecei nestas vidas há uns 5 anos.

O futebolista profissional é acompanhado por especialistas, nutricionistas, é monitorizado, o esforço é todo ele doseado e prescrito. Eu vou correr com uns ténis da feira e uns calções e uma camisola das mais baratas.

O futebolista profissional tem massagistas e jacuzzis para relaxar. Eu massajo as costas só aonde chego com a minha própria mão, e é mais para coçar alguma borbulha incómoda. E jacuzzi só quando a boca do chuveiro se desenrosca sem eu dar por isso e levo com um jacto mais forte do que estava à espera.

O futebolista profissional tem uma dieta rica e energética. Eu vivo de bróculos cozidos e pescada cozida e alguma fruta e dois pãezinhos por dia, porque mais do que isso e a balança dispara.

Ainda assim estes rapazolas com metade da minha idade, com dietas energéticas, com exercício físico prescrito, com uma condição física invejável, ainda assim queixam-se de cansaço quando jogam duas vezes por semana e correm, no total, mais ou menos o mesmo que eu corri há bocadito, e já estou pronto para outra.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Das bibliocousas

Na livraria uma senhora encomenda um livro porque, diz, apesar de já o ter, não o encontra nas estantes. Já estive mais longe disso. Quero dizer: já cheguei à fase de não encontrar. Só falta chegar à de comprar outra vez os já muitos que sei que tenho mas já não sei em que estante. Por outro lado, já tenho encontrado nas minhas estantes, quando me dá para as arrumar, muita cousa de que já não me lembrava que tinha, outras que podia jurar que não tinha.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Soubesse a espanholada a choldra em que isto se tornaria e não teria sido preciso andar depois à bulha quase 30 anos

RELAÇÃO DE TUDO O QUE PASSOU NA FELICE ACLAMAÇÃO DO MUI ALTO E MUI PODEROSO REI DOM JOÃO O IV
(1641)

Sexta-feira, depois de estar prevenido tudo quanto era necessário para a defensa da vida − siguindo o parecer de D. Miguel de Almeida − se confessaram todos, e se prepararam, pedindo a muitos relegiosos orações e missas, e dispondo-se como quem havia de entrar em um conflito, em um transe e em um perigo tão atroz, tão horrível, tão estupendo e tão alheio do que até agora viram quantas repúblicas hove no Universo. À tarde deste mesmo dia foram alguns dos mais autorizados do Povo a manifestar aos fidalgos que estavam com grande zelo e vigilância prevenidos para o sábado seguinte. Alegraram-se os fidalgos vendo que na ocasião era certo que o Povo os havia de siguir.

Amanheceu o desejado dia, e além de outras muitas circunstâncias que nele houve para se presumir com sólido fundamento que foi este impulso disposto e governado pela vontade divina, se considerou grande mistério em repetir então a Igreja aquelas palavras da Epístola Ad Romanos, cap.13, quando o glorioso apóstolo S. Paulo diz que é já hora de despertarmos, porque está a nossa salvação mais perto do que presumimos:

Fratres hora est iam nos de somno surgere, nunc enim propior est nostra salus, quam cum credidimus.

Que parecia que o mesmo Deus nos estava dizendo que era já chegada aquela felice hora que ele prometera a el-rei D. Afonso Henriques. Deu-se enfim o ponto para as nove horas da menhã, e deu-se ordem a todos para que, poucos a poucos, por vários caminhos, se ajuntassem no terreiro do Paço, o que se fez com recato e boa disposição, que uns em coches, outros a cavalo, outros a pé se dividiram em troços por todo aquele espaço que há desd’ o Arco dos Pregos até o Arco do Ouro. Andava já o segredo tão público, que o dia de antes ũa criada de D. Antão de Almada mandou um negro a casa de certa senhora cujo marido estava persiguido e preso por Miguel de Vasconcelos, e despois de estar o negro no pátio veio ela a ũa veranda e com muito desenfado lhe advertiu em alta e inteligível voz que dixesse àquela senhora que se não agastasse, que amenhã havia de ir o senhor D. Antão de Almada com outros fidalgos a matar ao secretário e a soltar ao senhor seu marido. E D. António Mascarenhas, encontrando no claustro de São Francisco de Enxobregas a Miguel de Vasconcelos, passou por ele sem lhe tirar o chapéu, e perguntando-lhe alguns fidalgos e alguns religiosos do mesmo convento porque não falava ao secretário, respondeu que entendia que era espécie de treição fazer cortesia a um homem a quem ele sabia de certo que havia de tirar a vida.

Também o doutor João Pinto Ribeiro, quando esta prodigiosa menhã veio de sua casa à porta da capela a esperar que se juntassem os fidalgos, encontrou no caminho um dos amigos a quem ele havia convidado sem lhe dizer o para quê, o qual, como andava desejoso de saber este segredo, lhe rogou que lhe dixesse aonde iam, e ele lhe respondeu: «− Não é nada; imos aqui abaxo até a sala dos tudescos a tirar um rei e pôr outro, e logo nos tornamos para casa.». Mas nenhũa cousa houve de tanto assombro − em razão de andar o segredo já na praça − como haver, naquela mesma hora em que o conflito estava próximo, quem − sem saber nada do que se preparava − entrou na Secretaria e avisou a Miguel de Vasconcelos, amoestando-o que se saísse lá por aquela porta do forte que olha para o mar, e que sem demora se metesse na sua gôndola e se passasse à outra banda. Porém já neste tempo, depois de estarem unidos e resolutos, pouco importava que o segredo se não observasse com todo o rigor, porque uma vez chegado o intento àqueles termos, não podia deixar de ter efeito, quanto mais que, se era decreto de Deus, que Portugal restaurasse a perdida liberdade, que descuido, que estorvo ou que embaraço podia haver que lhe fizesse impedimento?

Neste comenos deu o relógio do Paço nove horas, e como quando o fogo de ũa mina atea na pólvora e saem num mesmo instante por várias aberturas da terra − em cópia larga, com medonho ímpeto − mil raios e mil despedaçados e abrasadores mármores, assi feros, assi terríveis e assi furiosos saíram num mesmo tempo alguns fidalgos dos coches, e logo foram em seu siguimento com a mesma deliberação os mais que, a cavalo, ou a pé, vinham para aquele efeito. Subiram todos intrépidos por ũa e outra escada do Paço, já com as armas prontas, e dispostos para ver a cara ao mais estupendo transe em que desde que hove guerras no mundo se viu o coração humano.

Felice Aclamação, ff. 13-16 (ed. Evelina Verdelho)

sexta-feira, novembro 26, 2010

mens uix sana in corpore sano

As contas batiam certo: acabar a aula e sair da FLUL às 19:40, para estar na FCSH às 20:00, para começar outra aula. Só que ao chegar ao Metro, os altifalantes vomitavam que a Linha Amarela estava interrompida. Solução? Respirar fundo e correr até à Avenida de Berna. São 19:45, mais cousa menos cousa.

Mochila com 8,4kg às costas (eu sei, demasiado peso, mas são tudo cousas essenciais), a correr pela Alameda da Universidade abaixo, Campo Grande, Entre Campos, Campo Pequeno, primeira metade da Avenida de Berna - a última metade foi feita já a passo, para não dar mau aspecto, um professor todo suado a correr à porta da faculdade.

Mas correu tudo bem. São cerca de 15 minutos, a correr, desde a Faculdade de Letras à FCSH da Universidade Nova. E quando me perguntam para que é que eu faço duas a três corridas de 10 a 15 km cada por semana, eu respondo que é também para fazer frente a circunstâncias como estas.

quarta-feira, novembro 24, 2010

O desassossego do pedante

 

O Filme do Desassossego não passa no circuito comercial, o que, segundo se explica na página, se justifica por não se querer que o filme passe em salas de centros comerciais - porque se pretende, diz a página oficial, dar "dignidade e carácter de acontecimento cultural" a cada exibição. Cá está a pusilanimidade, a parolice tuga no seu melhor.

Não é que me pareça mal a masturbação implícita no cerimonial descrito para cada exibição. Acho até lindamente que o filme passe em cine-teatros e que tenha em todas as exibições toda a pompa que a página descreve. Mas não vejo qualquer justificação que o impeça de passar também no circuito comercial - e se essa justificação for financeira, então que o assumam e se deixem de justificações bacocas a acusar implicitamente de bárbaros ou pelo menos de culturalmene indignos os que frequentam os cinemas nos centros comerciais.

E sou insuspeito quando tomo a defesa da passagem em circuito comercial: eu nem vou ver filmes a centros comerciais, simplesmente porque o que lá passa, com algumas excepções, não me estimula, é-me aborrecido, custa-me mesmo a entender como é que alguém pode achar graça àquilo. Nos últimos 20 anos não devo ter ido ver mais do que 5 ou 6 filmes a salas comerciais (não é exagero), e saí arrependido de quase todos. Mais ainda, acho uma falta de gosto e de civismo os ruídos e os cheiros decorrentes da mastigação e do sorver das pipocas e dos sumos. Mas daí a poder justificar com isto a não exibição deste filme, financiado pelo Estado, em salas de cinema comerciais, parece-me no mínimo uma parolice.

Este filme, depreende-se assim do que se lê na sua página oficial, depreende-se  também desta exibição exclusiva em salas poucas e escolhidas a dedo, e depreende-se, sobretudo, da recusa em passar no circuito comercial, não é para todos, é só para os que o merecem.

Mesmo tendo sido financiado em parte com o dinheiro de todos nós, inclusive daqueles que vão ao cinema nos centros comerciais.

domingo, novembro 21, 2010

O trabalho liberta peso



Com este horário de gente douda, a correr, nem sempre de forma metafórica, entre a Cidade Universitária e a Avenida de Berna, sem um único dia de descanso, nem sequer Sábados e menos ainda Domingos, já perdi mais peso em pouco mais de dous meses do que nos três anos anteriores. Mais, a balança disse-me esta manhã que estou a pouco mais de 2kg do mínimo absoluto dos últimos 25 anos.

domingo, outubro 24, 2010

Banhoca

Depois de ouvir alguém dizer que o Liédson tinha ido tomar banho mais cedo, a filha do meu vizinho de bancada, que devia ter uns 4 ou 5 anos (ela, não ele), perguntou ao pai se o Liédson não tinha banheira em casa.

quinta-feira, outubro 21, 2010

Semana da Turquia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

SEMANA  DA


  Description: porlogo


Durante a semana de 25 a 29 de Outubro 2010
terão lugar na Universidade diversas actividades
por ocasião do Dia Nacional da República da Turquia



PROGRAMA


- FÓRUM:     quem são os turcos, a actualidade turca,
a adesão da Turquia à União Europeia, etc.

Anfiteatro III
25 de Outubro 2010
16h00


- ISTAMBUL: EXPOSIÇÃO DE FOTOS

Biblioteca da Faculdade de Letras
25 a 29 de Outubro 2010


- WORKSHOP DE “EBRU”
Pintura tradicional

Entrada da Faculdade de Letras
26 de Outubro 2010


- STAND TURCO

Entrada da Faculdade de Letras
26 de Outubro 2010


- CINEMA TURCO
Consultar cartaz

Sala de Vídeo da Faculdade de Letras
26 a 28 de Outubro 2010


Informações

Prof. Muhsin Mumcu

sábado, outubro 09, 2010

Da competência, outra vez

Enquanto lavrei a tese, a Biblioteca Apostólica Vaticana esteve fechada, durante anos e sem data prevista de reabertura (*). Tive, assim, de recorrer a cópias manhosas de microfilme, já que a Vaticana cobrava fotografias digitais a preço de ouro. Um dos documentos essenciais para o meu plano de tese só era acessível em fotocópias ou PDF feitos a partir desses microfilmes, e era praticamente ilegível. Comuniquei esse facto à Vaticana, e segui em frente. 

Choraminguei na introdução da tese e nos capítulos relevantes a impossibilidade de editar e traduzir o dito cujo documento, já que mandar vir fotografias digitais seria mais ou menos o equivalente ao défice português (o documento tem cerca de 200 páginas). Há algumas semanas recebi um email da Vaticana a dizer que tinham feito nova cópia do manuscrito e que mo iam enviar - sem eu ter pedido nada. Ainda pensei que o meu inglês torturado os tivesse levado a pensar que era o DVD que estava ilegível, e que me iriam mandar a mesma cópia ilegível. Mas não. Ontem chegou-me um DVD com uma reprodução nova, legibilíssima. E não me cobraram um cêntimo.

Demasiado tarde, porém. A tese já foi excretada nos serviços, e, a avaliar pelo desprezo a que a historiografia actual vota este período da nossa História, não me parece que haja mais ninguém interessado em 200 páginas, mais cousa menos cousa, a tentar provar que D. João IV era um aldrabão e que Filipe IV era o legítimo rei desta choldra.

---
(*) Queixamo-nos da BN, mas ao menos essa tem data de reabertura marcada.

domingo, setembro 26, 2010

A praga do embaixador

A cousa conta-se, telegraficamente, assim: depois da Restauração, e até 1669, os papas Urbano VIII, Inocêncio X, Alexandre VII e Clemente IX sempre se recusaram a reconhecer a independência de Portugal. Assim, recusavam receber oicialmente os embaixadores portugueses, e a prover os bispados de Portugal, cousa que a nós nos parece hoje de nenhuma importância, mas que na altura era vital. Em Dezembro 1655, após 15 anos de fracassos, o embaixador Sousa Coutinho consegue ser recebido a título particular pelo papa Alexandre VII, e, poucas semanas depois, deixa-lhe uma chatíssima arenga com as queixas portuguesas. O papa não lhe ligou a mínima, como é natural, mais preocupado em não desagradar aos poderosos espanhóis. Das queixinhas do embaixador português retiro este naco, com a ortografia original do manuscrito que consultei, do Arquivo Secreto Vaticano, e demonstra bem o desespero a que já se tinha chegado em Portugal, perante o católico desprezo dos papas.


Mi sono steso molto in questa materia, ma non tanto, come richiedeua la di lei necessità, e così riducendo il tutto a due sole parole, dico, Beatissimo Padre, col rispetto, che deuo al uero successor di S. Pietro, ma con quella libertà Christiana, che deuo ancora alla sua Catedra, che i mali caggionati dalle durezze passate, hanno bastato à perdere tante anime, che non sò se i due predecessori immediati di Vostra Santità hauran potuto allegare al Tribunal di Dio per scusa legitima di non hauer pasciuta quella gregge si numerosa per hauerli i Ministri del Re Cattolico sollecitati a non farlo, quando il precetto di Dio è si rigoroso al contrario, che Giesù Christo si dichiarò con suo Padre di non hauer trascurata pur una dell' anime à lui commesse: Quos dedisti mihi non perdidi ex eis quemquam. Ben sò, che nel morire ne sentirono acuti stimoli di rimorso, ma non permise Iddio, che chi haueua in uila trascurato si longamente negotio di tanta importanza lo rimediasse nel fine.

quinta-feira, setembro 16, 2010

Quid miraris?

Continuo nos sermões. Frei Francisco Escobar (1617-1679) justifica a cobardia de D. João IV durante as Alterações de Évora (1637), nas quais basicamente não mexeu uma palha para ajudar os revoltosos e fez o jogo espanhol, como obedecendo a desígnios divinos.

Bem ia já mostrando Portugal a impaciência com o governo de Rei estranho no antecipado motim da cidade de Évora, confessando que não tinha já ombros para sustentar tão grande peso: e não deixa de ser mistério, o mover-se na era de trinta e oito. Esperava Portugal na era de quarenta ver-se restituído à glória de ter pai, e rei natural, faltavam-lhe naquele tempo dous anos para chegar à era de quarenta, que muito rompesse em motins, e inquietações! Trinta e oito anos havia, que um miserável paralítico padecia na mesma casa do Remédio; vem um Anjo a mover as águas, e só pera este pobre não havia lugar naquela piscina; impaciente com a opressão de tantos males rompe em brados e suspiros: non habeo hominem! E pera que estranha tanto os males, se tão feito está a padecê‑los? Grandemente Santo Agostinho: Quid miraris, quia languebat, quia ad quadraginta duos minus annos habebat? Estava o paralítico na era de trinta e oito anos de enfermidade, faltavam-lhe dous para chegar a quarenta, esta era a causa da sua impaciência: quid miraris, etc. Na era de trinta e oito vivia Portugal sujeiro à Coroa estranha, faltava-lhe dous anos para chegar a quarenta, em que havia de lograr Rei e Pai da pátria: que muito rompesse em motins, inquietações, quid miraris?

Frei Francisco Escobar
Sermão gratulatório pelo restabelecimento da saúde de D. João IV, 1655

ed.João Francisco Marques, A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração, Quasi, Lisboa, 2007

terça-feira, setembro 14, 2010

Dos impostos

Faz hoje 368 anos que o Pe. António Vieira pronunciou o Sermão de Santo António, na igreja das Chagas, em Lisboa, a apelar à participação de todos no esforço de guerra para manter a independência do reino, restaurada ainda não havia 2 anos. Apelava concretamente a que todos participassem com os seus impostos, o que seria o tema dominante das Cortes que se reuniram no dia seguinte. É uma ideia que continua bem actual, num país onde todos tentam fugir aos impostos, sobretudo os que têm mais, e onde se instalou a prática terceiro-mundista do pagamento sem factura, sem perceber que assim não vamos a lado nenhum. Dou a palavra a Vieira.

Estes (*) são os elementos de que se compõe a república. Da maneira, pois, que aqueles três elementos naturais deixam de ser o que eram, para se converterem em uma espécie conservadora das cousas: Ex eo, quod fuit, in alteram speciem commutatur; assim estes três elementos políticos hão de deixar de ser o que são, para se reduzirem unidos a um estado que mais convenha à conservação do reino. O estado Eclesiástico deixe de ser o que é por imunidade, e anime-se a assistir com o que não deve. O estado da Nobreza deixe de ser o que é por privilégios, e alente-se a concorrer com o que não usa. O estado do Povo deixe de ser o que é por possibilidade, e esforce-se a contribuir com o que pode; e desta maneira deixando cada um de ser o que foi, alcançarão todos juntos a ser o que devem; sendo esta concorde união dos três elementos eficaz conservadora do quarto. Vos estis sal terrae.

(*) o Estado Nobreza, o Estado Eclesiástico, o Estado do Povo.

Pe. António Vieira
Sermão de Santo António (Lisboa, 14 de Setembro de 1642)

domingo, setembro 12, 2010

Pescadores de reinos


No dia 14 de Setembro de 1642, na véspera das segundas cortes após a Restauração, nas quais D. João IV ia tentar obter mais dinheiros dos impostos para financiar a guerra contra Castela, o Pe. António Vieira derrama do púlpito da igreja das Chagas, em Lisboa, um dos meus sermões preferidos, o chamado de Santo António, no qual apela aos nobres e eclesiásticos que se deixem de mariquices se decidam a contribuir também eles para o esforço de guerra, por meio do pagamento de impostos, pois de outra forma não é possível conservar o reino recentemente restaurado.

Fomos pescadores astutos, fomos pescadores venturosos; aproveitámo-nos da água envolta, lançámos as redes a tempo, e ainda que tomámos somente um peixe rei, foi o mais formoso lanço que se fez nunca, não digo nas ribeiras do Tejo, mas em quantas rodeiam as praias do Oceano. Pescou Portugal o seu Reino, pescou Portugal a sua Coroa: advirta agora Portugal, que a não pescou para comer, senão para a conservar. Foi pescador, seja sal.
Sermão de Santo António (Lisboa, 14 de Setembro de 1642)

sábado, setembro 11, 2010

Deus nosso senhor castiga


Ainda a propósito da história da mão de Cristo que se desprendeu da cruz, o primeiro número da Gazeta da Restaração, a primeira publição periódica regular portuguesa, datado de Dezembro de 1641, contra logo na primeira página um curioso caso de um céptico que não se deixava levar por histórias de fradalhada e padralhada, e a quem deusnossenhor castigou.

Num lugar da Beira se afirma que ouue hum homẽ, que ouuindo dizer numa cõuersação que na felice aclamação delRey nosso Senhor fizera o crucifixo da Sè o milagre, que a todos he notorio: disse que podia a caso a imagem do Senhor despregar o braço; & assim como acabou de dizer estas palauras cahio huma parede junto da qual estauão todos os da cõuersação, & sò a elle matou.

Gazeta em que se relatam as novas todas, que ouve nesta Corte, e que vieram de varias partes no mes de Novembro de 1641

domingo, agosto 29, 2010

O levantamento de Portugal

O caso deu-se, segundo uns, no próprio dia 1 de Dezembro de 1640, segundo outros, terá ocorrido apenas no dia da aclamação de D. João IV, a 15 de Dezembro. Seja como for, o caso deu brado na época, e aparece referido em vários textos de propaganda a favor da Restauração de Portugal. Transcrevo da Restauração de Portugal Prodigiosa, que relata os milagres e prodígios associados à Restauração. É uma obra fundamental para o entendimento desta época crucial da nossa História, bem como da temática do Quinto Império, e por isso permanece inédita e desconhecida fora dos meios académicos, tal como a generalidade das outras do mesmo período.

Transcrevo respeitando a ortografia original, excepto nos casos de manifesto erro tipográfico.


Sahindo o Arcebispo da Sè na manhaã do Sabbado com os Conegos, fidalgos, & innumerauel gente, que se ajuntou em hum momento, leuaua diante hum clerigo a Cruz Archiepiscopal, chegãdo a jũto da porta da Igreja de Sancto Antonio, lhe pediraõ algũas pessoas lãçasse a bençã, elle pondo os olhos no Crucifixo lhe pedio quizesse bendiçoar aquelle Pouo. Dizẽ algũas pessoas que então despregou o Sancto Crucifixo a mão direita que tinha pregada na Cruz.

Porém o que todos viraõ olhando pera o Senhor neste passo, foi, que a mão direita estaua despregada, & com o braço em algũa distancia da Cruz, do que dantes ninguem dera fè, sabendose, que da Sé sahiraõ pregadas ambas as mãos com tarraxas. Com esta admirauel demonstraçaõ do Senhor, conceberaõ os prezẽtes mui grande consolaçaõ em suas almas, & a tiueram por claras prendas de o Senhor os auer de defender, & perpetuar na liberdade principiada.

Nos campos de Ourique mostrou Christo Senhor nosso claramente, que o leuantamento de Portugal a Reyno era obra sua, como dissemos no capitulo quinto da primeira parte, quando escolheo o Inuictissimo Rey Dom Affonso Henriquez para Rey de Portugal, e empenhou sua diuina palaura, que nele, & seus descẽdentes estabeleceria seu Imperio, & na decima sexta geraçam attenuada tornaria a por os olhos de sua misericordia.

Nesta Cidade de Lisboa, cabeça do Reyno desprega da Cruz o mesmo Senhor em publico sua mão direita leuantando com ella a Portugal attenuado, caido, & prostrado por terra, desempenhando desta sorte a palaura, que dera a seu primeiro Rey, pois em Principe Portuguez herdeiro de seu Real sangue, de nouo vẽ seus diuinos olhos estabelecendo, & confirmando nelle o Imperio Lusitano, conforme o prometera pelo Sancto Iob, operi manuum tuarum porriges dexteram.

(...)

A este admirauel sinal da mão direita do Senhor podemos atribuir a paz, & quietaçaõ, em que tudo ficou despois de Sua Magestade acclamado Rey, & naõ auer mais sangue, nem mais morte em hũa tam subita & nunca vista mudança de hum Reyno, estando viuo o possuidor delle.


Gregório de Almeida, Restauração de Portugal Prodigiosa, Lisboa, 1643
Parte II, cap. IV, pp.272-273.


domingo, agosto 22, 2010

Made in Portugal

Isto de vir trabalhar para a esplanada tem destas cousas. A menina da mesa ao lado vomita cavalidades xenófobas e nazis há largos minutos a propósito de umas chinelas que se partiram e garante serem feitas na China. Depois pega na malfadada chinela e diz, numa antecipação vitoriosa, "querem ver? olha, made in" - e depois fecha o sorriso e diz rapidamente "Portugal" e muda de assunto.

sexta-feira, agosto 20, 2010

Uma questão de açúcar

Duas senhoras no café, esta tarde. Uma sugere à outra que peça um sumo de fruta. Ela torce o nariz, arrepanha os lábios e responde "não, filha, por causa do açúcar, tem muito açúcar". Depois desenrola os olhos ao longo da vitrine, leva o dedo porcino ao lábio e pede à menina "um bolinho daqueles, não, daqueles, sim, desses". Depois pede um café com adoçante, e enquanto afocinha no creme do bolo de chocolate aponta para o dito cujo adoçante e vai dizendo "é que eu o açúcar não posso". Parece mentira mas eu juro que é verdade.

terça-feira, agosto 17, 2010

Luz, & Calor


Agora que vai a morrer o dia em que se lembram os 300 anos da morte do Pe. Manuel Bernardes (1644-1710), um excerto da Luz e Calor, com imagem da capa de um exemplar que veio da biblioteca do 'meu' convento do Varatojo (Torres Vedras), onde declinei as minhas palavras de grego clássico, lá para os anos 80 do século passado, e onde, se bem me lembro, há uma tela antiga que o representa.

Lavra às vezes o lapidario hum diamante com muytas facetas miudas por cima (chamãolhe rosa): & de qualquer parte que bulís com elle está scintillãdo differentes brilhos. Tal me parece o ineffavel mysterio de Deos feyto Homem: hum diamante de valor inestimavel, que Deos amante meteo no dedo de sua Esposa a Igreja Santa; diamante tão fermoso, & claro, tão sem jaça, nem cabello, que tem dentro em si mesmo todo hum Sol de justiça: Orietur vobis Sol justitiae: & por qualquer parte que o consideremos, fere os olhos do entendimento com differentes luzes, todas manifestações da Divina, & ineffavel Caridade.

Luz e Calor, II Parte, Op. I, Estímulos de Amor Divino: Estímulo V (p. 309 da edição de 1696)

Existe uma edição da Lello, de 1991, desta obra. Achei-a na Feira do Livro, mas nunca vi em nenhuma livraria.

Pe. Manuel Bernardes


Comemoram-se hoje os 300 anos da morte do Pe. Manuel Bernardes, nascido a 20 de Agosto de 1644, e falecido a 17 desse mesmo mês, em 1710. É uma das figuras maiores, um dos expoentes da Literatura Portuguesa, e por isso mesmo continua praticamente sem edições contemporâneas, tirando algumas selectas e edições nas primeiras décadas do século XX, e completamente esquecido e ignorada no ensino.

domingo, agosto 15, 2010

Das referências

Há muitas cousas insuportáveis nas obras académicas, mas poucas mais do que aquele infame hábito de, num livro de 400 ou 500 páginas, citar uma única vez uma obra de um autor, que depois passa a ser referida como "op. cit." ou "loc. cit.", o que, nos casos em que o mesmo autor tem mais do que uma obra, só pode dizer alguma cousa a quem tem memória de elefante ou anda munido de lapinhos e folha de papel volante para ir apontando os nomes das obras. Ainda agora tive recuar 12 páginas de sucessivos "loc. cit." até dar finalmente com o raio que a partisse da referência completa de um manuscrito.

Felizmente vai-se impondo o hábito mais inteligente de nomear sempre o autor, e substituir a obra pela data de publicação, o que permite identificar rapidamente com uma ida à bibliografia. Isto no caso de obras impressas, pois nos manuscritos parece que se mantém a mesma técnica sádica. Quanto a mim, e correndo o risco de ser atacado por isso na defesa, na minha tese as citações são todas referidas ou pela data, ou, no caso de manuscritos ou impressos antigos, pela referência completa. Ah, e não há cá "idem, ibidem": mesmo em notas de rodapé seguidas, a referência vem sempre completa.

sábado, agosto 14, 2010

Só mesmo as que caíram no chão

No dia 2 de Abril de 1645 o embaixador espanhol em Roma preparou uma soberba recepção ao embaixador da Igreja de Portugal (e, às escondidas, também embaixador de Portugal): à meia noite, um grupo de militares varreu a tiros e à pancada a comitiva portuguesa, repetindo igual tratamento fornecido, a 20 de Agosto de 1642, ao bispo de Lamego, embaixador de Portugal. Assim se fazia, também, a diplomacia naqueles tempos em que Portugal e Espanha estavam em guerra aberta, após o 1,º de Dezembro de 1640. E eu estou tão farto deles todos que se pudesse também pegava numa escopeta ou num arcabuz, e corria com eles todos da minha frente.

segunda-feira, agosto 09, 2010

Da transfusão dos sonhos


O Manuel, que tem quási 4 anos, contou-me que montava um golfinho no mar, mas que veio uma senhora e o empurrou, e o golfinho foi-se embora, e ele chorou muito. Appressou-se a esclarecer que aquilo não tinha accontecido mesmo, que tinha sido só um sonho. Mas que mesmo assim tinha chorado. A Carolina, que se achega aos 5 anos, confirmou tudo. Talvez tenha notado algum scepticismo no meu olhar, e explicou que quando o mano está a sonhar e ela o abbraça, os sonhos delle passam para ella, e sonham os dois a mesma cousa.

Tarquinio Merula





Tarquinio Merula (1595-1665)
Interp: Jordi Savall

في ظل الكلام



(13 de Março de 1941 – 9 de Agosto de 2008)

sábado, julho 31, 2010

CSI: Bagdade

Um pescador deita as redes ao rio e em vez de peixe pesca um saco de pano. Lá dentro, uma mão. O chefe da polícia manda investigar, e aparece outro saco, agora com um pé. Procura-se saber quem é o fabricante daqueles sacos. Depois, pede-se a lista de compradores, até se chegar ao assassino, que é preso e condenado.

Não é o argumento de mais um CSI. É uma narrativa árabe medieval, retirada da edição bilingue Nouvelles policières du monde abbasside أخبار بوليسية من العصر العباسي , que recolhe pequenas histórias (verdadeiras micronarrativas) de autores do período abássida, desde al-Mas'udî (m. 956) a Ibn Arabshâh (m. 1450).


O título é, no entanto, enganador, pois na generalidade não são histórias policiais tal como as entendemos hoje, apesar do exemplo dado. São pequenas histórias que têm em comum o tema do crime, mas em poucas se desenrola verdadeiramente um argumento policial. O título é ainda mais enganador em árabe, ao recorrer a um francesismo ("bûlîsîya") em vez do radical árabe tradicional.

Apesar de tudo, é um livrinho a não perder, mais ainda quando se é estudante de árabe. O texto original está profusamente anotado e vocalizado, e no final há um apêndice gramatical e lexical. Melhor ainda, os textos são reapresentados em anexo, agora sem notas nem vocalização.

segunda-feira, julho 26, 2010

Da ignorância

Na televisão ligada na sala ouço a dobragem de um documentário do canal Odisseia dizer duas vezes que os crocodilos de Cuba comiam "gigantes preguiçosos", "entretanto extintos". Mais do que uma aflitiva ignorância na língua original do documentário, revela-se uma escandalosa, inacreditável estupidez que ultrapassa os limites do razoável. Até a Carolina, com os seus quase 5 anos, sabe que o original de certeza dizia "preguiças gigantes", animal que de facto, como qualquer chimpanzé de QI médio sabe, existiu mas que entretanto se extinguiu. Agora "gigantes preguiçosos"?! O que virá a seguir? Leões a comer ogres malcheirosos? Tigres a comer gnomos zangados? Lobos a desfazer fadas sorridentes? Mas quem é que contrata - e, pior, quem é que paga a estes gajos para fazerem traduções deste calibre?

Da competência

Mandei vir do Arquivo Secreto Vaticano cópias dos fólios finais de um documento de 1656, que achava que me tinha esquecido de pedir da última vez. Para o pedido bastou, tal como das outras vezes, um email. Hoje recebo resposta a dizer que os fólios pedidos estão em branco, e se quero na mesma. Respondo a dizer que não, que apenas se confirma que o documento está incompleto, e dei o título do dito cujo. Menos de uma hora depois, novo email, a dizer que foram verificar o códice, e que se quiser podem copiar-me o que resta do documento. Já no meu último pedido fotografaram documentos inteiros de que eu não sabia a foliação. Ou seja, deram-se ao trabalho de verem eles onde começavam e onde acabavam. Seria difícil encontrar em Portugal igual gentileza e competência. Eu pelo menos não tenho tido a mesma receptividade na BN, e na Torre do Tombo, apesar da extrema gentileza do pessoal da referência, também ainda não obtive nada de parecido.

sábado, julho 24, 2010

Da caligraphia

Desabituado a escrever à mão em caracteres latinos mais do que uma ou duas linhas esporadicamente, desde que terminei a licenciatura, em 1993 (as "pedagógicas" e o mestrado já os fiz fingindo apenas que tirava appontamentos, para não offender os professores), a minha caligraphia em caracteres latinos há muito que perdeu o "cali", que a bem dizer nunca foi evidente, e se transformou em cacographia. Assim, no início de cada anno recommendo aos alunos que frequentem aulas de paleographia em simultâneo, de modo a entenderem o que escrevo (passe o euphemismo) no quadro. A caligraphia árabe, pello contrário, merece rasgados elogios de todos os árabes que lhe passam os olhos por cima, e vai melhorando a cada dia.

Por isso, depois de escrever 16 páginas à mão, para a tese, ontem e hoje, estou com três problemas graves. Primo, um calo doloroso no cotovelo direito, de o apoiar na cadeira enquanto escrevo. Secundo, uma vaga mas persistente moinha em todas as articulações da mão e braço direitos. Tertio et praesertim, 16 páginas pintalgadas de traços a lápis, que às vezes se parecem vagamente com lettras latinas, mas que rapidamente descambam para uma linha contínua com arrebiques, ondinhas e pintinhas, que vou ter uma tremenda difficuldade em entender, quando daqui a pouco começar a passá-las para o OpenOffice (eu cá não sou rico nem pyrata, só uso programmas gratuitos).

sexta-feira, julho 23, 2010

Dies Dominicus

Ainda que admita ser falha minha, nunca entendi os argumentos para proibir que abram ao Domingo as poucas superfícies comerciais que ainda não o fazem. Não consigo entender sobretudo aqueles que dizem que é para defender o comércio tradicional (proteccionismo, portanto). Mas defender como? Alguém no seu perfeito juízo acha que quem for impedido de ir ao Jumbo ou ao Continente ao Domingo à tarde vai esperar pela Segunda de manhã para ir às compras? E o mesmo argumento não deveria impor o encerramento de todos os estabelecimentos e serviços à mesma hora (que nunca se lembrem dessa)?

Depois há os argumentos religiosos e morais, que se prendem com a ideia de que o Domingo é o dia do Senhor e que é para estar com a família. Ou seja, só o é para os trabalhadores de hipermercado, pois não vejo - FELIZMENTE - os mesmos argumentos serem utilizados para impor o encerramento de TODOS os estabelecimentos e serviços ao Domingo. Mas bastaria ser um argumento religioso a impor regras à sociedade civil, incluindo aos que, como eu, não são religiosos, bastaria isso para me opor frontalmente.

Há ainda o argumento de que se sacrificam os trabalhadores. Também aí há algo que não entendo. Partindo do princípio (não garantido) de que trabalham mais horas, não ganham mais também? E, de novo, por coerência não se devia aplicar a mesma objecção a todos os estabelecimentos e serviços abertos todos os dias?

Nada disto faz sentido para mim.

quarta-feira, julho 21, 2010

Do Serviço Nacional de Saúde

Ontem fui à consulta do otorrino, no Hospital público (não sou rico e não alimento seguradoras senão no que é obrigatório por lei). A marcação da primeira consulta já tinha sido relativamente rápida, cousa de 1 mês - pouco mais que das vezes a que tive de recorrer ao privado, na ilusão de que seria mais rápido.

A sentença do médico foi peremptória: o meu nariz por dentro tem mais curvas do que a A8, é preciso operar. Pensei que não seria necessário dizer-lhe que não me dava jeito para já, que tinha uma merda de uma tese para entregar até Outubro. Achei que como era "no público" ia para uma lista de espera de meses ou anos, sendo uma intervenção sem qualquer urgência. Ainda assim, por descargo de consciência, disse a medo que não me dava jeito que fosse antes do fim do ano.

Achei que ele se ia rir na minha cara, e dizer qualquer cousa como "qual ano, 2011, 2012?". Mas não. Abanou a cabeça e disse que então não podia marcar já, porque o mais provável é que a operação fosse para dentro de um mês ou dois. Pasmei, e lá deixámos a cousa em águas de bacalhau da Terra Nova. No fim trocámos bacalhauzada, desejou-me boa sorte para o doutoramento, e acrescentou que no caso dele nem pensava em doutoramentos, pois queria era que o deixassem trabalhar. Eu assenti vigorosamente e lá me fui.

domingo, julho 11, 2010

Ainda a carroça e o Ferrari

Missão: instalar uma Canon MP270 em Windows XP e em Linux (ubuntu), recorrendo aos drivers fornecidos pelo fabricante.

Windows: depois de alguns cliques e várias janelas de diálogo, o software diz que vai demorar 16 minutos. No fim foi coisa de 5 ou 6.

Linux: um clique, dois cliques, alguns segundos (nem 20). Já está.

sexta-feira, julho 02, 2010

As tetas da loba

«O latim é uma língua muito subtil, toda de sons e de sentidos condensados, rebelde à grosseira tendência perifrástica das nossas línguas vulgares, que têm a mania de trocar tudo em miúdos. O célebre 'dente de coelho' dos padres-mestres não passa de um atestado da sua ignorância e preguiça. Bem dizia o meu mestre de latinidade, em Liège: "O latim não está no Magnum Lexicon: é cá uma coisa do sangue". Nem parece senão que o estou a ouvir: "La Louve tend ses tétines. Prends-y ton bien".»

Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal

quinta-feira, julho 01, 2010

A fada dos arrotos

Já tinha reparado que os desenhos animados andam muito escatológicos. São cada vez mais comuns aqueles em que os bonecos - mesmo os bonzinhos - se desfazem em ventosidades por cima e por baixo. Mas a cousa está mais grave do que pensava. Hoje a Carolina estava a jogar um jogo de fadas - FADAS, notai bem - no computador, que consistia em pôr as ditas fadas - fadas, pelamordedeus - a comer cerejas. E sim, a cada duas ou três cerejas as fadas - fadas, senhores!!! - arrotavam com estrondo, para gáudio dos miúdos (vede o filme até ao fim). O tempora!

quarta-feira, junho 30, 2010

As carroças e os ferrari

Em minha casa sempre, em casa da minha mãe quase sempre, a Carolina e o Manuel estão habituados a computadores com Linux. Por isso, das raras vezes em que, como hoje, dão com o computador da minha mãe ligado no Windows, não param de perguntar "porque é que demora tanto?", "porque é que o rato não mexe?", "porque é que nunca mais começa?". E eu não tenho outra resposta senão "é windows, tem paciência".

terça-feira, junho 29, 2010

Das tempestades humanas

A Restauração dera-se em 1 de Dezembro de 1640. Estamos em 1653, e o Papa Inocêncio X, tal como o seu antecessor, Urbano VIII (e como o seu sucessor, Alexandre VII...), continua firme na sua recusa em reconhecer o novo rei de Portugal. A recusa, motivada sobretudo pelo receio de represálias por parte da poderosíssima Espanha, traduz-se quer em não receber os embaixadores que D. João IV lhe envia para manifestar a sua obediência, quer sobretudo em não prover de Bispos as Sés portuguesas. É neste contexto que surgem os Balidos das Igrejas de Portugal ao Supremo Pastor Summo Pontifice Romano... (Paris, 1653), onde se explanam as teses portuguesas sobre o assunto, e se implora ao Papa a resolução do problema. O passo transcrito leva a ortografia modernizada, excepto nos casos em que o original reflecte a pronúncia da época.

9. Arribar da viagem só pela inspecção das selagens não sucede ao Piloto de experiência. Os ameaços de algũa paixão não devem atemorizar a Nau de São Pedro, a fim de que se não dirija às importantes resoluções. Pode flutuar nas maiores ondas, mas não se pode perder nas tempestades humanas.

Balidos das Igrejas de Portugal ao Supremo Pastor Summo Pontifice Romano. Pellos tres Estados do Reyno, Paris, 1653

segunda-feira, junho 28, 2010

Brabos gigantes

Chafurdando quase ao acaso nos microfilmes da BN com impressos do século XVII dei com um papel delicioso, impresso em Lisboa em 1642, e com o promissor título Cartel de Desafio, y Protestacion Cavalleresca de Don Quixote de la Mancha Cauallero de la triste figura en defension de sus Castellanos. Na primeira página, uma ilustração com dois cavaleiros a disparar um contra o outro. Infelizmente o cartão de fotocópias chegou ao fim quando faltava imprimir a última página. Mas isto promete. Para os mais distraídos, isto insere-se, naturalmente, no contexto da Guerra da Restauração.

Um cheirinho do início:

El Cauallero de la triste Figura DON QVIXOTE DE LA MANCHA, &c. Digo que como es notorio al mundo mi valor inuencible, lo sea tambien la Protestacion, y Reto, que por la presente hago, y es que despues del miserable castigo, que el Cielo ha dado a mi nacion Castellana en pena justa de su soberbia, embustes, y tirannias, reduziendola al mayor extremo de couardia, que jà mas ha encontrado Cauallero andante en la redondez de la tierra, con que vergonçosamente ha perdido su monarchia, y en particular despues de la misteriosa libertad de los Portuguezes nuestros aduersarios antigos, y increible corage, con que el Verano passado estos brabos gigantes, sin receber daño alguno, han por todas partes talado nuestros campos, quemado nuestros lugares, y muerto nuestras gentes ...

domingo, junho 27, 2010

Notas sobre o Mundial . III . Heil Lobo

O comentador desportivo Luís Freitas Lobo tem rosnado xenofobicamente contra os brasileiros naturalizados (os outros não, o problema dele, tal como o da generalidade dos tugas, é exclusivamente contra os naturalizados brasileiros, não contra os congoleses ou sãotomenses ou outros). Gostava de saber o que tem ele a dizer sobre o Klose ou o Podolsky na selecção alemã. Embora, lá está, como não são naturalizados brasileiros é natural que não se importe.

Notas sobre o Mundial . II . Senhoras do Caravaggio

A selecção da FPF (talvez a mais fraca das últimas duas décadas) desta vez, ao contrário de 2006, teve adversários a sério na fase de grupos. Mesmo assim passou com facilidade. Ao Carlos Queirós, no entanto, tem faltado a vaca leiteira da Senhora do Caravaggio de Bigode, que, com a melhor selecção de sempre calhou sempre com fases de grupos de caca, e grupos de qualificação da treta (é que ficar em segundo lugar à rasquinha, abaixo da Polónia e à frente da Finlânda, não é bem o mesmo que ficar em segundo lugar à rasquinha, abaixo da Dinamarca e à frente da Suécia).

Notas sobre o Mundial . I . Antena 2

A Antena 2 está a ficar desempoeirada. E cada vez melhor. Está cheia de gente nova e boa, abriu-se a novos géneros e até passa música electrónica. E é por isso que cada vez mais a ouço (*). Por isso não me espantei por, na Sexta de manhã (creio que aqui), se aludir ao jogo do mundial entre a selecção da FPF e a da Confederação Brasileira de Futebol, que serviu de pretexto para sugestões musicais e literárias de qualidade. É bom ver que se começam a abandonar aqueles preconceitos bacocos, absurdos, ridículos, segundo os quais futebol e cultura são incompatíveis. E é por isso que digo e repito: a Antena 2 está a ficar desempoeirada. E cada vez melhor.

---
(*) Aliás, é a única rádio que ouço, apenas com excepção da Antena 1 para os relatos de futebol.

sábado, junho 19, 2010

Das lombadas


Não era dos meus autores preferidos, muito longe disso. Mas estes encheram-me as medidas, como podem testemunhar as lombadas manchadas e partidas de leituras e releituras. A Jangada viajou comigo entre Lisboa e Milão em três comboios pachorrentos e duas longas mudanças para cada lado.

Da ordinarice

O Sr. Cavaco lamenta a morte de José Saramago. Esse mesmo Sr. Cavaco, que liderava o Governo que, pela mão do inadmissível Sousa Lara, censurou por motivos religiosos o concurso do Evangelho segundo Jesus Cristo a um prémio literário europeu. É o que se chama despudor. Para não dizer falta de vergonha na cara.

quarta-feira, junho 16, 2010

Bloomsday 2010



He rested an innocent book on the edge of the desk, smiling his defiance. His private papers in the original. Ta an bad ar an tir. Taim imo shagart. Put beurla on it, littlejohn.

Quoth littlejohn Eglinton:
- I was prepared for paradoxes from what Malachi Mulligan told us but I may as well warn you that if you want to shake my belief that Shakespeare is Hamlet you have a stern task before you.

Bear with me.
Stephen withstood the bane of miscreant eyes, glinting stern under wrinkled brows. A basilisk. E quando vede l'uomo l'attosca. Messer Brunetto, I thank thee for the word.

James Joyce, Ulysses

segunda-feira, junho 07, 2010


Da Hidra de Lerna se conta que a cada cabeça que Hércules lhe cortava nasciam duas. A solução foi, com a ajuda de Iolau, queimar imediatamente o coto logo que lhe cortava uma cabeça. A minha tese vai-se parecendo cada vez mais com a dita cuja Hidra, mas não parece haver fogo que lhe valha. Ainda agora, quando pensava ter finalmente conseguido arrancar-lhe uma das cabeças, eis que nasceram mais duas. Há por aí algum maçarico industrial a mais, a ver se a cousa se resolve de vez?

quinta-feira, junho 03, 2010

O Corpo de Deus de 1647

[reedição com alterações da publicação do ano passado]

A coisa conta-se em poucas palavras, e, apesar de quase completamente ignorada pela historiografia contemporânea, é fundamental na propaganda da Restauração. Mais, até ao século XIX ainda era fonte de inspiração de obras literárias, como "O Regicida", de Camilo Castelo Branco, e indirectamente as suas sequelas "A filha do regicida" e "A caveira da mártir".

No dia de Corpo de Deus de 1647, que nesse ano calhou a 20 de Junho, D. João IV comungou e foi à procissão, que percorria o que é hoje a Baixa de Lisboa. Alegadamente acoitado numas casas que teria alugado e cujas paredes teria derrubado para poder ter vista para os dois lados da rua, Domingos Leite Pereira esperava a passagem do rei para, alegadamente a mando de Castela, matar D. João IV (*). O rei lá foi à procissão, e voltou, imagino, para o regaço da sua Luisinha de Gusmão, no fim da dita. Então não houve tiroteio? Pois não. Alegadamente, Domingos Leite Pereira ter-se-á arrependido à última da hora, ao ver uma "majestade divina" pairando sobre o rei e que lhe teria paralisado os membros, impedindo-o de alvejar o Bragança - o que veio mesmo a calhar à propaganda quinto-imperista, que se fartou de escrever sobre isto. Confessou isto tudo em interrogatório, ou pelo menos assim diz a a crónica oficial, que acrescenta que o regicida frustrado, terá entoado loas a D. João IV, qual Saulo, aliás Paulo, depois da Estrada de Damasco.

Domingos Leite Pereira terá então fugido para Madrid, onde alegadamente terá prometido a Filipe IV que tentaria de novo matar o homem - e aqui não bate a bota com a perdigota: então se a criatura viu a tal majestade divina sobre o rei e lhe entoou louvores, então porque raio resolve que afinal vai tentar matar o homem de novo, o tal a quem entoou louvores e que viu ser protegido pelo seu Deus? Bom, mas é assim que reza a crónica oficial, e quem sou eu para contrariar Frei Francisco Brandão. (o Camilo arranjou uma versão muito melhor, mas o Camilo é o Camilo, eu sou eu).

Seja como for, em finais de Julho de 1647 Domingos Leite Pereira está de novo em Portugal, alegadamente para tentar matar D. João IV, outra vez. A tentativa não passa disso mesmo. Traído pelo companheiro, Roque da Cunha, é preso no dia 31 de Julho de 1647. Parece que confessou logo tudo, inclusive a história da majestade divina, que tão bem aproveitada seria pela propaganda do Quinto Império. Foram encontradas no lugar do crime que não aconteceu a escopeta e as balas embebidas em veneno. O que é muito conveniente, e revelador de que o moço era bastante distraído. Como a justiça naqueles tempos era célere, talvez demasiado célere, foi executado com requintes de crueldade no dia 21 de Agosto de 1647, apenas 2 meses depois do crime que não chegou a cometer.

O lugar onde não aconteceu o atentado está hoje em parte visível na Rua dos Fanqueiros, pois a rainha D. Luísa de Gusmão mandou que as casas fossem derrubadas e ali se fizesse um convento. Hoje apenas restam partes da igreja do convento, destruído em 1755.


A crónica oficial do acontecimento saiu logo em 1647, e é uma delícia propagandística. Recomendo vivamente os passos em discurso directo, sobretudo os atribuídos a D. João IV.

Um dos muitos textos que então se escreveram sobre o caso foi um sermão de Frei Luís de Sá, lente na Universidade de Coimbra, e que tem este delicioso título:

«Sermão que pregou o doutor Fr. Luís de Saa religioso da ordem de S. Bernardo, Lente da Cadeira de S. Thomas, e Gabriel da Universidade de Coimbra na procissão solemne que o Reverendíssimo Cabido do próprio bispado instituiu. Pro gratiarum actione, de Deus haver livrado a sua Majestade da admirável treição, que contra ele por ordem de Castela se tinha maquinado em dia de Corpus Christi


Foi pronunciado em Coimbra em 8 de Setembro de 1647, e publicado no mesmo ano - naquela época não se brincava em serviço, não havia cá as molezas e procrastinações dos nossos dias. Transcrevo dois parágrafos, modernizando a ortografia, mas conservando os casos em que a escrita denuncia formas de pronunciar diferentes das contemporâneas.

«Eu não me espanto por não ter este Salmo Autor ao certo, porque como é de um ânimo agradecido, e há tão poucos no mundo, não é novo não se lhe saber o nome, e acrescento que visto não ter este Salmo conhecidamente Autor, levado do protentoso milagre porque vimos render hoje as graças a esta santa Sé Catedral de Coimbra, com pública procissão, tão autorizada, que são estas palavras do Anjo Custódio do nosso Rei e Reino, falando expressamente com ele no Santíssimo dia de Corpus, defronte de nossa Senhora da Palma de Lisboa, quando Castela toda sempre falsa, com parte de Portugal traidor, capitaneados ambos do Diabo merediano, intentaram fazer alvo de suas setas, e tiros no pino do meio dia, a quem ia coberto do escudo da maior verdade, a custódia e âmbula do Santíssimo Sacramento.

Querem dizer as palavras do Anjo Custódio deste Reino falando com o Sereníssimo Rei nosso senhor Dom João o IV. A verdade do Senhor vos servira de escudo em toda a vida, não tendes que temer sombras nocturnas, nem setas que se derijam contra vós todos os dias: não façais caso de conselhos, e juntas de traidores, que no segredo da noite se maquinam contra vossa pessoa, que são acções de quem vive em trevas co juízo; finalmente tende grande ânimo, quando ao pino do meio dia vos virdes cometer do Diabo merediano com incurso diabólico.»


Fonte: impresso na Biblioteca Nacional, com a cota TR5661/19p

-----
(*) Portugal estava, recorde-se, em estado de guerra com Espanha, na sequência do 1.º de Dezembro de 1640, situação que se arrastaria por mais dois reinados, e só terminaria com a paz de 1668, e o reconhecimento da independência por parte de Espanha.

quinta-feira, maio 27, 2010

Da mortificação do tacto

Frei António das Chagas (1631-1682)

Exercicio de Mortificação para toda a Semana

Sexta feira


Mortifique o sentido do Tacto, pondo pela manhaã cilicio atè o jantar, se tiver saude; à noite disciplina por espaço de hum Miserere. Não se toque, nem se coce de advertencia. Não se veja ao espelho, nem parte alguma sua. Jejue, se puder, a pão, & agua; & visite tres vezes o Santissimo Sacramento, fazendo por ter dor de seus pecados; faça por andar cuidando este dia nas dores de meu Senhor Jesu Christo Crucificado.



Obras Espirituaes Posthumas do Veneravel Padre Fr. Antonio das Chagas ...
Lisboa, 1684.

Transcrevo respeitando a orthographia do impresso original, que consultei com reverência. Sobre este injustamente esquecido frade franciscano seiscentista, cuja biografia resumida se pode ler aqui, e cuja sepultura se pode pisar no convento do Varatojo, em Torres Vedras, escreve o seu contemporâneo Pe. António Vieira, em carta a Duarte Ribeiro de Macedo, datada de 1 de Janeiro de 1675:

"... e é que, poucos dias antes do último correio, partido aos 13 de Novembro, se tinha ouvido em Lisboa um Jonas pregando:
Adhuc quadraginta dies et Niniue subuertetur. Este homem, que pode ser que seja conhecido de V. S.ª, é um capitão, grande poeta vulgar, chamado antigamente António da Fonseca, o qual se meteu frade de S. Francisco haverá oito ou dez anos, e hoje se chama frei António das Chagas. Haverá dois ou três anos começou a pregar apostolicamente, exortando a penitência, mas com cerimónias não usadas dos Apóstolos, como mostrar do púlpito uma caveira, tocar uma campainha, tirar muitas vezes um Cristo, dar-se bofetadas, e outras demonstrações semelhantes, com as quais, e com a opinião de santo, leva após si toda Lisboa"


António Vieira, Cartas, ed. J. Lúcio de Azevedo, vol. III, INCM, 1997.
p. 144

quarta-feira, maio 26, 2010

Historiarum Lusitanarum ab anno MDCXL usque ad MDCLVII Libri Decem

D. Fernando de Meneses (1614-1699), 2.º Conde da Ericeira, foi irmão do autor da História de Portugal Restaurado, D. Luís de Meneses, 3.º Conde da Ericeira. Tal como o irmão mais novo, também D. Fernando escreveu uma História do período da Restauração, mas teve o azar de o fazer em Latim; publicados só em 1734, em dois volumes, os Historiarum Lusitanarum ab anno MDCXL usque ad MDCLVII Libri Decem sofrem uma sina ainda mais triste do que a obra do mano mais novo, que mal por mal ainda é citada e lida por alguns excêntricos, e teve uma edição nos anos 40 do século XX - já os Historiarum libri por estarem em latim, permanecem inéditos e desconhecidos. E tendo em conta que D. Fernando participou activamente no processo da Restauração, é escusado lembrar a importância desta obra enquanto História, mas também fonte em primeira mão. Sic transit gloria Portugalliae.

terça-feira, maio 25, 2010

Do reinar e do servir


Nas vésperas do 1.º de Dezembro de 1640 o Duque de Bragança está ainda, de acordo com a historiografia da época, indeciso, sem saber se há-de reclamar a Coroa e embarcar na revolução, ou se há-de continuar na pachorra do Paço de Vila Viçosa, de volta da caça e da música. Consulta então a sua mulher, espanhola de todos os costados, da poderosa casa dos Duques de Medina-Sidónia. D. Luísa de Gusmão ter-lhe-á então respondido mais ou menos o que conta D. Luís de Meneses, o Conde da Ericeira, na sua monumental e incontornável História de Portugal Restaurado, começada a publicar nos finais de Seiscentos, e que, precisamente por ser um marco na historiografia portuguesa, permanece esquecida e por reeditar desde os anos 40 do século XX:

"A Duquesa, que era dotada de entendimento tão claro e ânimo tão varonil, como depois acreditaram largas experiências, ponderando os perigos da sua Casa, sendo objecto do rigor do Conde-Duque, julgou generosamente por mais acertado, ainda que a morte fosse consequência da Coroa, morrer reinando que acabar servindo, e animou o Duque, dizendo que todos os vaticínios eram segurança da empresa, e que neste sentido só a dilação de se coroar podia ser prejudicial."


D. Luís de Meneses, História de Portugal Restaurado, Vol. I
ed. António Álvaro Dória, Livraria Civilização, Porto, 1945, p. 111

segunda-feira, maio 17, 2010


this
forest pool
A so

of Black
er than est
if

Im
agines
more than life

must die to
merely
Know


e. e. cummings
95 poems
Liveright, 2002

domingo, maio 16, 2010

O Cardeal foi às putas

Continuo a ler, extasiado, as cartas do inigualável embaixador Francisco de Sousa Coutinho (c.1597-1660), que em 1655 conseguiu ser recebido a título particular pelo Papa Alexandre VII, quando Portugal andava desde 1641 (e andaria ainda até 1669) a tentar que os sucessivos Papas se dignassem fechar as pernas a Espanha, e reconhecer a independência conseguida em 1640.

Um dos inimigos de estimação de Sousa Coutinho era o Cardeal Protector de Portugal, de seu nome Ursino. Numa carta de 22 de Abril de 1656, diz mesmo isto ao secretário Gaspar de Faria:

"Mas o que sobretudo sinto é o espanto que toda esta Corte tem desde o Papa até o mais ínfimo, de havermos escolhido um Protector, que é o ludíbrio dos Cardeais, e homem de quem no Colégio se não faz caso algum, e me dezia nestes dias um autorizado que me não espantasse disso, que começara a vida com a caça e com as putas sem tratar de outra cousa, que assim continuava ainda, e assim havia de acabar, e tal como isto é o Protector que temos."


Retirei o texto do Corpo Diplomático Português (volume XIII, página 285) actualizando a ortografia, excepto nos casos em que reflecte a pronúncia da época. A edição é a de 1907.

quarta-feira, maio 12, 2010

Da alparca de Deus, ou de como já não se fazem frades desta qualidade


Ainda na mesma carta a D. João IV, de 28 de Janeiro de 1656, o embaixador Sousa Coutinho, em plena guerra militar mas sobretudo diplomática com Espanha, na sequência da Restauração, fala da bravura de um frade franciscano português, imaginativamente chamado Francisco de Assis, perante os ataques verbais de um frade espanhol, que chamava apenas "Duque de Bragança" a D. João IV, recusando-se assim reconhecê-lo Rei.

Estes fidalgos homiziados que aqui andam o tomaram tão pesadamente que, se os eu deixara, queriam tirar satisfação do castelhano; aquietei-os com lhes dizer que de castelhanos não podíamos esperar outro tratamento: que no que se nos não dizia em nossa presença nos não faziam agravo algum, que a ser nela, que não só deles esperaria eu a boa conta que diriam de si, mas que de qualquer dos seus criados, como havia feito frei Francisco de Assis, que é um frade franciscano da Província de Enxobregas, irmão de Manuel Alves Carrilho, português tão desatinado que um destes dias em Ara Coeli, que é o convento em que está, porque houve um frade castelhano que quis usar dos mesmos termos do Duque de Bragança, saltou nele descalçando uma alparca, e moeu com ela de maneira que se lho não tiram das mãos, houvera de sair delas em muito mau estado: o Assis esteve preso alguns dias, mas pôs os castelhanos em estado que diante dele nenhum falava.

Carta de Sousa Coutinho a D. João IV, de Agosto ou Setembro de 1656
in Corpo Diplomático Português, vol. XIII
pp. 229 & seqq.

terça-feira, maio 11, 2010

Da mama de ir a Roma


A cousa é mais ou menos assim. Estamos em fins de Janeiro de 1656, ou seja 15 anos depois da Restauração, mais cousa menos cousa. Cousa que está negra, pois a bem dizer só os estados inimigos de Espanha reconhecem a independência de Portugal (França, Holanda, Suécia, Inglaterra e pouco mais). O mais importante de todos, a Santa Sé, continua sem passar cartão a D. João IV: em Roma vamos no terceiro Papa desde 1640, primeiro Urbano VIII, depois Inocêncio X, e agora Alexandre VII, eleito no início de 1655. Todos se recusam terminantemente a receber a título oficial os embaixadores de D. João IV, e, pior, a prover os Bispados de Portugal.

O Reino está, pois, sem Bispos, sem reconhecimento internacional relevante (tirando a França), e à espera a qualquer momento que a Espanha resolva as outras guerras mais importantes, e ataque em força, de modo a recuperar isto. É neste contexto que D. João IV manda para Roma o embaixador Sousa Coutinho, então representante em Paris, para tentar que o novo Papa se dignasse recebê-lo. Inesperadamente, Sousa Coutinho, que chega a Roma em Novembro de 1655, consegue ser recebido menos de um mês depois. Mas a título particular, não oficial, o que é como quem diz: ficou tudo na mesma.

Apesar do fracasso relativo, Sousa Coutinho, que tinha um feitio dos diabos, está eufórico, e acha (e di-lo em carta ao Rei) que conseguiu num mês o que os outros não lograram em 15 anos. O que não deixa de ser verdade: tal como os outros, a bem dizer não conseguiu nada. Mas ele acha que não, acha que a cousa está arrumada (puro engano, só em 1669 se resolve o problema, já Sousa Coutinho estava morto e enterrado havia quase uma década). E numa das muitas e inflamadas cartas que escreve a D. João IV, saiu-se com esta pérola, que não lhe terá granjeado muitas simpatias entre o Clero, e que poderá explicar as más relações que manteve sempre com o Cardeal Protector do Reino, Ursino, e sobretudo o ter sido mandado regressar à base por D. João IV nesse mesmo ano:

O que [o Cardeal Ursino] escreve a Vossa Majestade que o Papa declarou, ou deu a entender que daria Bispos a Portugal, mas que não receberia Embaixador salva pace, cousa é que lhe não saiu nunca pela boca, são openiões (sic) vulgares, particularmente dos nossos frades portugueses, que como de haver Embaixador se segue por consequência infalível terem Núncio no Reino, e tirar-se-lhes a mama de virem a Roma a título de servirem a Vossa Majestade, andam apontando estes meios pelas praças, e pelas casas dos Cardeais.

Carta de Sousa Coutinho a D. João IV, de 28 de Janeiro de 1656
in Corpo Diplomático Português, vol. XIII
pp. 229 & seqq.


Modernizei a ortografia excepto quando reflecte a pronúncia da época. A edição é retirada do Corpo Diplomático Português, edição monumental, ainda que com muitos erros, que não é reeditada desde o século XIX, seguindo uma tradição muito portuguesa, de não reeditar obras de referência.

Nota: aquele senhor bem posto ali em cima é o Papa Alexandre VII (1655-1667)
Este é um blogue laico, e portanto não concede nem faz tolerância de ponto pela visita de um líder religioso.

sábado, maio 08, 2010

Dos livros que matam

Não consigo abrir um livro sem terror: acredito que a literatura mata.
Pedro Eiras

A propósito da apresentação das Substâncias Perigosas de Pedro Eiras, hoje, na Trama, e do tema da literatura que mata, lembrei-me da história de al-Jâhiz (*), grande estudioso árabe que nasceu em Baçorá, actual Iraque, por volta de 781. Foi este al-Jâhiz um tremendo estudioso, que tinha um terrível vício: ler. Ler muito. Conta-se que pagava aos livreiros de Bagdade, onde viveu grande parte da sua vida, e de Baçorá para o deixarem pernoitar nas suas livrarias, no meio dos livros, que lia horas a fio, até ser dia. O que talvez tenha vindo a ser a sua desgraça. E é com isto que regresso à frase que serve de epígrafe a esta nuga. É que não terá sido a literatura a matar, em 869, al-Jâhiz, mas, muito mais prosaicamente, uma pilha de livros mal equilibrados que se abatera sobre ele.


---

(*) Correctamente a transcição é al-Jâḥiẓ (الجاحظ). O nome é, na verdade, uma alcunha. A palavra significa qualquer coisa como "de olhos esbugalhados" - mal que ataca muito boa gente que gosta de ler.

quinta-feira, maio 06, 2010

Diálogo entre Babieca y Rocinante



«Diálogo entre Babieca y Rocinante

Soneto

B. Cómo estáis, Rocinante, tan delgado?
R. Porque nunca se come, y se trabaja.
B. Pues qué es de la cebada y de la paja?
R. No me deja mi amo ni un bocado.

B. Andá, señor, que estáis muy mal criado,
pues vuestra lengua de asno al amo ultraja.
R. Asno se es de la cuna a la mortaja.
Queréislo ver? Miraldo enamorado.

B. Es necedad amar? R. No es gran prudencia.
B. Metafísico estáis. R. Es que no como.
B. Quejaos del escudero. R. No es bastante.

Cómo me he de quejar en mi dolencia,
si el amo y escudero o mayordomo
son tan rocines como Rocinante?»

Cervantes, Don Quijote de la Mancha

segunda-feira, maio 03, 2010

So shy shy shy(and with a
look the very boldest man
can scarcely dare to meet no matter

how he'll try to try)

So wrong(wrong wrong)and with a
smile at which the rightest man
remembers there is such a thing

as spring and wonders why

So gay gay gay and with a
wisdom not the wisest man
will partly understand(although

the wisest man am i)

So young young young and with a
something makes the oldest man
(whoever he may be) the only

man who'll never die


e. e. cummings

Boas informações

O café do Modelo de Torres Vedras informa num cartaz que de Segunda a Quinta encerra às 23:00. Já às Sextas e Sábados o cartaz lembra que encerra às 23:00. E aos Domingos e feriados o cartaz avisa, não vá alguém ir ao engano, que encerra às 23:00. É sempre bom saber.

Da felicidade dos homens


Borges, em 1978, já cego.
«Yo sigo jugando a no ser ciego, yo sigo comprando libros, yo sigo llenando mi casa de libros. Los otros días me regalaron una edición del año 1966 de la Enciclopedia de Brokhause. Yo sentí la presencia de ese libro en mi casa, la sentí como una suerte de felicidad. Ahí estaban los veintitantos volúmenes con una letra gótica que no puedo leer, con los mapas y grabados que no puedo ver; y sin embargo, el libro estaba ahí. Yo sentía como una gravitación amistosa del libro. Pienso que el libro es una de las posibilidades de felicidad que tenemos los hombres.»
Jorge Luis Borges, Borges Oral, Alianza Editorial, 2006