sábado, dezembro 26, 2009

Dos excessos

É voz corrente que durante uma dieta não faz mal um dia de excessos de vez em quando. Dizem-no médicos e nutricionistas. Ainda que não faça muito sentido, eu sempre tenho acreditado nisto. Mas como fica sempre a dúvida a roer o sossego, tenho evitado os excessos - até porque a balança começa aos gritos nas raras vezes em que condescendo. Por isso, neste Natal resolvi limitar os excessos ao mínimo possível: meia dúzia de fatias de bolo rei na véspera e dia de Natal, 4 bombons (sim, contei-os), um prato de bacalhau com batatas fritas e arroz. A balança não gostou, e já cá cantam 2,5kg a mais em relação a Sexta-Feira. Por isso, venham-me cá com histórias de que se pode prevaricar de vez em quando, que levam com a balança na cabeça.

P.S.: não se pense que são paranóias, quem me conhece sabe que nos últimos anos perdi cerca de 40kg, passando de cachalote a orca. E apesar de só comer vegetais e peixe cozido e de correr entre 10 a 15km dia sim dia não, a barriga continua protuberante - e desenganem-se os eventuais interessados, a barriga é, juntamente com os pés n.º 46, a única protuberância significativa da minha anatomia.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

Os ouvidos de Deus


«Na Música, a que S[ua] Majestade era tão conhecidamente inclinado, foi cousa muito advertida, e reparada, que toda era ordenada ao culto Divino. Até hoje não houve no Mundo livraria de Música, como a que S[ua] Majestade tinha ajuntado de todo ele, e de todos os famosos Mestres de todas as idades. Mas que continha toda esta livraria? Missas, Vésperas, Psalmos, Poesias, e Versos Divinos: enfim, Música Eclesiástica. A música de David lançava os Demónios fora dos corpos: há outra música, que mete os Demónios na alma. Toda a Música de S[ua] Majestade era verdadeiramente Música de David, nem podia ouvir outra. Tendo tantos Músicos, e gastando tanto com eles, não tinha S[ua] Majestade Músicos de Câmara, senão só de Capela. Quando queria ouvir Música, não mandava cantar um tono, que é o gosto ordinário dos Príncipes, e dos que o não são; mandava cantar um Psalmo, ou um Magnificat, ou outra cousa Sagrada, com admiração de todos. Muitos dos Psalmos de David têm por título: Ipsi David: Para o mesmo David. Lede estes Psalmos, e achareis que todos continham louvores de Deus: de sorte que a Música, que era para David, era juntamente para Deus; e a Música, que era para Deus, era juntamente para David. Cá os Reis do Mundo têm Música de Câmara, e Músicos de Capela: Música para si, e Música para Deus. David, e El Rei D. João não eram assim: os seus ouvidos eram como o seu coração, feitos pela medida dos ouvidos de Deus; e só o que nos ouvidos de Deus fazia ressonância, tinha também harmonia nos seus ouvidos.»


Pe. António Vieira
Sermão das Exéquias do Augustíssimo Rei D. João IV o Animoso, o Invicto Pai da Pátria de Imortal Memória

in João Francisco Marques (ed.), Sermões do Padre António Vieira. Morte e Sepultura. Oratória Fúnebre. Figueirinhas, Porto, 2009

quarta-feira, dezembro 23, 2009

O meu Virgílio

Um excerto do sermão das exéquias de D. Teodósio (1634-1653), primogénito de D. João IV.
«Os seus amigos eram aqueles dous, que só acompanham a um homem a toda a parte, a que vá, que são Deus, e os livros. São os livros conselheiros sem respeito, e sem adulação, mas destes mesmos não tomava, senão os livros que são amigos; que também há outros, que são os maiores inimigos que tem a alma, que são os livros profanos. Nunca lia livros profanos, senão Filosóficos, ou Sagrados: dos Poetas um Homero, e a Virgílio; a este segundo chamava: O meu Virgílio


Pe. António Vieira
Sermão das Exéquias do Sereníssimo Príncipe de Portugal D. Teodósio de saudosa memória.

in João Francisco Marques (ed.), Sermões do Padre António Vieira. Morte e Sepultura. Oratória Fúnebre. Figueirinhas, Porto, 2009

domingo, dezembro 20, 2009

O Invicto Pai da Pátria


Do sermão das exéquias de D. João IV (1656). Retirado de uma bellíssima edição do professor João Francisco Marques, que tive o prazer de conhecer numa viagem de autocarro entre a Cidade Universitária e a Igreja de São Roque. Uma longa conversa embalada pelos engarrafamentos de Lisboa, em que apprendi mais do que em centenas de páginas de chartapácios.

«Foi El Rei D. João um Rei buscado, e achado por Deus. Há Reis, que parece que os fez a fortuna a olhos fechados, sem buscar, nem achar, senão acaso. Destes estão cheias as Histórias, como estiveram vazias as Coroas. El Rei D. João não só foi buscado, e achado, se não buscado, e achado por Deus. Mas onde o buscou Deus, e o achou? O que Deus buscou, era um Príncipe, que pudesse ser Rei, e Restaurador de Portugal: buscou-o entre os Príncipes pertensores do Reino, e achou-o na Casa de Bragança; buscou-o entre os Príncipes da Casa de Bragança, e achou-o na pessoa d'El Rei D. João. Os Príncipes pertensores à Coroa de Portugal foram cinco: Espanha, França, Sabóia, Parma, Bragança; e assim como Deus buscou a David entre todas as Tribos, e o achou no Real de Judá, assim buscando um Rei Restaurador de Portugal entre todos, os que tinham, ou podiam ter algum direito a ele, só na Real Casa de Bragança o achou.»
Pe. António Vieira
Sermão das Exéquias do Augustíssimo Rei D. João IV o Animoso, o Invicto Pai da Pátria de Imortal Memória

in João Francisco Marques (ed.), Sermões do Padre António Vieira. Morte e Sepultura. Oratória Fúnebre. Figueirinhas, Porto, 2009

sexta-feira, dezembro 18, 2009

Asfixia geológica

A TVI annunciou que tem provas irrefutáveis, resultantes de investigação da Felícia Cabrita, de que o Primeiro Ministro terá recebido luvas para permittir que occorresse o sismo de há dois dias. Segundo a TVI, as luvas são de lã cinzenta com pespontos azuis. Manuela Ferreira Leite já reagiu, denunciando o que designou por "intolerável asfixia geológica da sociedade portuguesa".

domingo, dezembro 13, 2009

Das paixões

De Frei Amador Arrais (1530-1600):

«Inda que sejas senhor das últimas Índias, e todo mundo te adore; se teus desejos, e paixões forem desordenadas, serás servo, e dentro de ti subjeito a leis iníquas. Então, com razão, dominarás sôbre tôdas as cousas, quando puderes ser Rei de ti mesmo.»

Diálogo IV, Parte I, Cap. IV

Conservei a orthographia da edição consultada:

Fr. Amador Arrais, Diálogos, ed. Mário Gonçalves Viana
Liv. Figueirinhas, Porto, 1944. p. 168

Maraviglioso ardimento


«Il Re di Portogallo fece grãdissima vccisione de Mori, & mẽtre combatteua con marauiglioso ardimẽto, & valore fu colto da una moschettata in vn fiãco, & vn'altra gli era stato amazzato il cauallo. Onde egli caddè in terra, et fu anco tosto con cinque colpi di lãcia morto questo misero Re.»

Battista Platina, Onofrio Panvinio, Antonio Ciccarelli, Historie delle Vite dei Sommi Pontefici, dal Salvatore Nostro sino a Clemente VIII..., Veneza, 1594


O excerpto transcripto, respeitando integralmente a orthographia e a pontuação da edição de 1594, diz respeito à vida do Pappa Gregório XIII, escripta por Antonio Ciccarelli.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Da falta de pachorra

Não tenho impressora. Por isso vim a casa da minha mãe imprimir da HP dela. Como ela não estava em casa e não sei a password para entrar no seu Linux, contei até 10, respirei fundo e arranquei em Windows Vista. Lembro-me de que quando lhe instalei a impressora no Linux neste mesmo portátil bastou espetar-lhe o cabo USB, apareceu uma janela a dizer que tinha detectado a impressora modelo tal e que estava a partir daquele momento instalada. Sem mais nada.

Por isso, e como toda a gente insiste na lenda urbana de que o Linux é muito complicado e o Windows é que é fácil, achei que não havia razões para me enervar por antecedência. Vã esperança. Depois de largos minutos a arrancar pachorrentamente (não sem antes bloquear e obrigar a reiniciar), lá tossiu, pigarreou e gaguejou uma janela a dizer que tinha achado um dispositivo novo e se queria que o instalasse. Sim, filho, quero. Vários cliques e janelas depois, anunciou triunfante que não tinha conseguido instalar, pois não tinha o CD do produto com os drivers. Como em Linux não foi preciso CD nenhum, estranhei, mas rendi-me. Lá achei na net um grossíssimo ficheiro de 100 megas, na página da HP. Saquei, cliquei, respondi a inúmeras perguntas, e estou há cerca de 10 mnutos à espera de que esta MERDA instale. Se juntar o tempo que esta MERDA demorou a arrancar, mais o tempo que esta MERDA demorou a arrotar janelas sucessivas a comunicar que ia procurar não sei o quê não sei aonde, mais o tempo que esta MERDA demorou a chegar à conclusão de que é uma MERDA e que não conseguia instalar sem o CD, mais o tempo que, depois do download dos drivers, esta MERDA está a instalar, com toda a pachorra, a sacar mais cenas da net (então porque raio é que saquei um ficheiro de 100 megas se isto vai sacar ainda mais durante a instalação???), mais o tempo que decorreu desde que iniciei esta MERDA e comecei este calvário, já lá vão exactamente 43 minutos - e barra de progresso diz que está no passo 2 de 4 e eu acho que vou desisir e esperar que a minha mãe chegue, para entrar em Linux no mesmíssimo computador e usar a mesmíssima impressora.

terça-feira, dezembro 01, 2009

Do Quinto Império

Faz hoje 369 anos.

Excerto de um sermão de Fr. Luís de Sá, pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, logo a 16 de Dezembro de 1640, um dia depois da aclamação de D. João IV como novo Rei de Portugal.

«Dizei-me, animosos Lusitanos, qual de nós duvidou nunca de que havíamos de vir a ter Rei natural, que restaurasse este Reino próprio, Império de Deus, depois daquela célebre promessa, que Jesus crucificado nosso Deus fez na noite antes da memoranda batalha de Ourique àquele raio da guerra, que ali jaz (*), sempre testemunha viva desta promessa, e verdade nunca morta, o nosso primeiro Afonso, e primeiro Rei deste Reino: volo in te (lhe disse o Senhor falando de rosto a rosto com ele) et in semine tuo imperium mihi stabilire: quero em ti, e em teus descendentes fundar um Império (não Reino só, não) próprio para mim, e se este reino e império do Senhor havia de ter esta larga interpolação de sessenta anos em que o governou Castela, também a restituição dele ficou profetizada logo deste tempo, pelo ermitão santo, nosso Samuel Evangélico, que naquela mesma noite falou ao nosso Rei: vinces, et non vinceris: posuit enim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque in sextam decimam generationem in qua attenuabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit (**), quem depois destas palavras (que no próprio original se guardam no cartório do real mosteiro de Alcobaça, cabeça da minha religião Cisterciense nestes reinos) firmadas com a própria mão Real daquele Rei que ali vedes: duvidou nunca, que havíamos de ter Rei Português, que nos livrasse do jugo de Castela? Ninguém certo: é bem verdade, que para em tudo ser profecia, e figura David do nosso felicíssim Rei, assim como os Hebreus variavam nas palavras, assim nós éramos vários nos discursos, acerca da pessoa, e mais do tempo, sendo, porém, sempre entre nós tão caseira esta profecia de nossa Restauração que havia quem a não tivesse pela primeira verdade.»

in João Francisco Marques (org.), A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração. Quasi, 2007.
pp. 84-85 (emendei apenas os erros crassos no latim)

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(*) Recordemos: o sermão foi pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, onde está o túmulo de D. Afonso Henriques, para onde provavelmente o pregador estaria mesmo a apontar.

(**) Vencerás e não serás vencido: na verdade [Deus] pôs sobre ti e sobre a tua descendência os olhos da sua misericórdia, até à décima sexta geração, na qual se atenuará a descendência, mas sobre ela, atenuada, ele deitará os olhos, e verá.

quarta-feira, novembro 25, 2009

Dîwân de las poetisas de al-Andalus

Trinta e três - 33 - poetisas árabes medievais, do al-Ândalus (quantas se podem contar no mundo cristão coevo?). Uma selecta organizada pela grande arabista espanhola - e uma das académicas mais simples, simpáticas e acessíveis que já conheci - Teresa Garulo. A antologia não é bilingue, mas tratando-se de obra de divulgação essa é uma questão menor. Deixo um cheirinho, de uma poetisa de Córdova.

«ay, gacela, que pastas siempre en este jardín,
soy semejante a ti
por esa soledad y por mis ojos negros,
las dos estamos solas, sin amigo,
sportemos, pacientes, lo que mana el destino!»

Qasmûna Bint Ismâ'îl al Yahûdî (s. XII)

Teresa Garulo (org.), Dîwân de las poetisas de al-Andalus. Hiperión, Madrid, 1998
ISBN 84-7517-168-0

terça-feira, novembro 24, 2009

Kafka revisitado


Já aqui tinha contado o processo kafkiano de marcação de consultas de alergologia no SNS, em Torres Vedras. Recordo: tendo-me dirigido às consultas externas do Hospital, pedi para me marcarem consulta no meu alergologista, onde não ia há algum tempo. A senhora do guiché rosnou que para marcar consulta para o meu alergologista tinha de ir à consulta do meu alergologista para ele me marcar uma consulta de alergologia. Abalado pela lógica do raciocínio, desisti, e por isso tenho continuado a produzir vários litros de ranho por dia.

Há dias voltei à carga. Desta vez, achando que eventualmente as senhoras do Hospital estivessem bêbedas (não achava outra explicação racional), dirigi-me directamente ao Hospital para doenças respiratórias (nós somos muito chiques, em Torres, temos dois hospitais públicos), em vez de marcar no Distrital, como sempre tinha feito, e depois esperar o contacto do outro. A medo lá comuniquei à menina do guiché, que regougou que para marcar consulta para o meu alergologista tinha de ir à consulta do meu alergologista para ele me marcar uma consulta de alergologia. Disposto a não desistir facilmente, perguntei se podia implorar ao meu alergologista que me recebesse entre consultas, para me marcar consulta para resolver o problema que podia ser resolvido naqueles minutos. Revirou os olhos e disse que podia tentar mas que não prometia nada. E eu desisti, outra vez.

domingo, novembro 08, 2009

Da pachorra

A minha misantropia sofre agravamento aos Domingos no supermercado, quando vou reabastecer-me de vegetais e frutas. Não é tanto por causa da quantidade de pessoas. Eu até gosto de multidões e apertos - tal como a natureza, eu aborreço (no sentido etimológico) o vazio. Só me entusiasmo, numa saída nocturna, em ruas apinhadas e em bares à cunha. Ponham-me numa rua vazia ou num bar com lugar para sentar, e começo a bocejar. Portanto, não é por causa da quantidade.

É por causa da pachorrência (se não existe passa a existir) dos casais de ar enfadado a empurrar devagar devagarinho o carrinho de compras e a tapar os caminhos, das senhoras de idade que andam lado a lado ocupando toda a faixa de rodagem, dos cachos de adolescentes pendurados nas mães a tapar os acessos às prateleiras, das senhoras (são sempre senhoras) que deixam os cestos ou os carrinhos a tapar o caminho enquanto hesitam na prateleira em frente entre comprar 6 cacetes destes ou 6 daqueles (ouvido há poucos minutos), e não deixam mais ninguém nem passar nem chegar-se ao pão, e eu ali a deitar fumo pelas orelhas a tentar passar, mas preso entre a pachorra de uns e a má educação de outros.

E depois as senhoras (também são sempre senhoras) que, já na caixa, esperam que esteja tudo registado para se dignarem pescar, sempre com muita pachorra, a carteira de dentro da mala sem fundo, e quando finalmente a acham abrem-na e despejam os dedos lá dentro, devagarinho, à procura do cartão ou do dinheiro, não sem antes esfregarem pachorrentamente os olhos no talão a ver se a operadora as enganou e registou um cacete a mais. Depois chego a casa, tomo um calmante, e juro que nunca mais volto ao supermercado ao Domingo.

segunda-feira, novembro 02, 2009

Da necessidade do mal


«Hay un argumento, muy elegante pero muy falso, de Leibniz, para defender la existencia del mal. Imaginemos dos bibliotecas. La primera está hecha de mil ejemplares de la Eneida, que se supone un libro perfecto y que acaso lo es. La otra contiene mil libros de valor heterogéneo y uno de ellos es la Eneida. Cuál de las dos es superior? Evidentemente, la segunda. Leibniz llega a la conclusión de que el mal es necesario para la variedad del mundo.»

Jorge Luis Borges, Siete Noches

sábado, outubro 31, 2009

Uma viagem de cliché


Apanhei hoje um táxi em Alfornelos (*), mas o que me saiu na rifa foi um cliché. Unhaca do mínimo protuberante, camisa arejada na peitaça peluda (nada de mariquices à jogador de bola), e a intolerável mania de meter conversa com o passageiro. Só lhe faltava o bigode e o Salazar-a-cada-esquina. E claro, lampião. No curto trajecto entre Alfornelos e o Campo Grande, fiquei a conhecer muitas das suas peripécias no Estádio do Galinheiro. Eu ia grunhindo monossílabos enquanto entornava os olhos na janela, a rezar aos meus deuses agnósticos para a viagem terminar depressa nem que fosse por causa de um furo ou de um buraco que se abrisse e nos engolisse. Mas o pior, senhores, o pior foi quando percebi que me tomou por lampião, e desatou a falar mal da "lagartagem" e dos "tripeiros", com piscadelas cúmplices pelo retrovisor, a que eu respondia com o ar mais agoniado que me foi possível. Ainda tentei ostentar assim uma pose intelectual e digna, de modo a desfazer o equívoco, o que no meu caso é quase tão difícil como armar-me em másculo marialva. Mas nada. À medida que íamos circulando pela 2.ª dita cuja a confiança ia aumentando numa proporção que acompanhava a fúria com que eu vomitava os olhos pela janela. Ainda pensei em desfazer o equívoco assumindo-me, mas receei represálias, e tinha mesmo de apanhar o autocarro - ia ao lançamento de um livro, coisa tremendamente intelectual, mas que pelos vistos não transpirou o suficiente. Quando finalmente aterrámos diante do Estádio de Alvalade, rosnei um boatardecomlicença, enfiei-me no autocarro, fui ao lançamento do coiso, e agora estou há horas numa angústia tremenda, a ir regularmente prantar-me diante do espelho à procura de qualquer coisa, qualquer sinal, sei lá, qualquer trejeito (será do meu ar efeminado?! Eu até pus muita colónia hoje.) que tenha levado o taxista a nem sequer hesitar em me tomar por lampião.



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(*) Normalmente ando a pé ou de transportes públicos, o que me permitiu perder quatro dezenas de quilos em poucos anos, e ter análises "de fazer inveja" (médico de família dixit). Também me permite correr 10km dia sim dia não, sem grandes dramas, coisa que parece que deixa rapazes profissionais com metade da minha idade fora de combate. Mas hoje arriscava-me a perder o autocarro e assim chegar atrasado a um compromisso.

La Iffanta Coronada

La Iffanta
Coronada.
Por El Rey Don Pedro,
Doña Ines de Castro.

Canto Primeiro

En que se cuenta la venida de doña Ines de Castro al reino de Portugal, se describe su rara hermosura en perfecciones corporales, y se trata de sus amores con el Iffante don Pedro, y su prision, con poeticas ficciones de general sentimiento por ella.

No canto los fingidos caualleros
Que la pluma chymerica lleuanta,
No Caesares Romanos verdaderos
Cuya fama notable al mundo espanta.

No vanos argonautas brauos fieros
Que la vana antiguedad sublima y canta,
No cursos de los cielos presurozos
Ni los siete planetas luminozos.


D. João Soares de Alarcão, La Iffanta Coronada. Por El Rey Don Pedro, Doña Ines de Castro, 1603
Edição de Rui Prudêncio

Versejadores seiscentistas

Retirado da belíssima edição de Rui Prudêncio da Iffanta Coronada de D. Soares de Alarcão (1603)


Soneto

Se a vos que a tuba entoa toa
Em Torres Vedras donde exclama & clama,
(Senhor dom Ioão Soares que a fama ama)
Epor louuar vossa pessoa soa

Se de Lisboa vos pregoa a Goa,
Onde do sol ardente inflama a flama,
Colhendo as flores que derrama a rama,
Ao tom que o mar & o ar atroa, & troa,

Das mesmas flores vos componha, & ponha
Com louro, & era em que verdura dura,
Capellas bellas no cabello bello.

E qualquer Musa que procura & cura
Louuaruos, cesse, pois bisonha sonha
Como eu debalde me desuello, & vello.

Nuno de Pina

res arabicae . I

Nos jornais locais aparecem os anúncios às festas das adiafas. É mais um fóssil linguístico do nosso passado arábico. A palavra, que se refere às festas rurais do fim das vindimas, vem do árabe aḍ-ḍiyâfa (*) [الضيافة], que significa "hospitalidade", "recepção hospitaleira". Provém do radical ḍâfa [ضاف], com o sentido de convidar, juntar, anexar.


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(*) a transcrição do dicionário Houaiss (edição Portugal) está errada.

Pornographia

Regresso ao tema do preço dos livros em Portugal. Que uma tradução portuguesa possa custar o triplo, às vezes o quádruplo de um original ou mesmo de uma tradução em outra língua, isso já me parece um escândalo. Engulo com dificuldade o argumento de que as tiragens são mais baixas, e por isso encarece o produto: além de as boas edições de bolso que recentemente começaram a sair o desmentirem, também me parece que se os livros fossem mais baratos haveria mais procura, e as tiragens seriam necessariamente maiores. Eu falo por mim: da nova literatura portuguesa só compro aquilo que sei à partida que tem qualidade. Não arrisco nomes novos, não sou rico.

Engulo, dizia, com dificuldade o argumento das tiragens baixas. Agora o que eu não consigo de maneira nenhuma entender, a não ser como ganância e chico-espertismo, é que a mesma edição custe em Portugal o dobro do que se mandar vir do país de origem. Refiro-me ao mais recente vencedor do Booker, Wolf Hall, da Hilary Mantel. Vi a edição original, de capa dura, à venda na Almedina do Saldanha por cerca de 20€. Na Amazon.co.uk está à venda a mesmíssima edição por £8,49 - ou seja, mais coisa menos coisa, 9,5€. Repito: a mesmíssima edição. Mesmo com os portes de envio, sair-me-á sempre mais barato mandar vir de Inglaterra a mesmíssima edição. Ora toma.

quinta-feira, outubro 29, 2009

(Ana María S. Tarrío)

«João Rodrigues de Sá de Meneses (1486/87-1579), alcaide-mor do Porto, celebrado pela geração camoniana como pai fundador da nova aristocracia das letras, prefigurou intensamente a dualidade renascentista da pena e da espada. Acusado quatro vezes perante o tribunal da Inquisição por comportamentos heréticos e por práticas de sodomia, representava a facção intelectual mais ousada da nobreza manuelina, marcada pelo impacte da formação humanística italiana e em breve incómoda, no período de rigor doutrinário contra-reformista (...). Elaborou as composições poéticas mais vanguardistas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende de 1516, renovando a medida velha com novos conceitos e princípios humanísticos antes da renovação métrica de Bernardim Ribeiro e Francisco de Sá de Miranda, seu primo. Além de várias composições poéticas neolatinas, redigiu a singular monografia 'De Platano', que aqui se publica. Nesta obra rara da literatura renascentista europeia a imagética neoplatónica da natureza aviva-se para produzir um discurso nacional que procura superar a condição de periferia cultural lusitana relativamente à hegemonia italiana.»

Ana María S. Tarrío, Paisagem e Erudição no Humanismo Português. João Rodrigues de Sá de Meneses. De Platano (1527-1537). Estudo introdutório, edição crítica, tradução e notas. Gulbenkian, Lisboa, 2009

domingo, outubro 25, 2009

Da Serra da Estrela e do mar que lhe deixa destroços



«Destas [montanhas] a mais notável é a que se chama da Estrela, por olhar de perto os astros. Está guardada por um lago e pelas trevas dos bosques. A água daquele, que é doce, comunica com o Oceano, ainda que esteja afastado vinte léguas. A comunhão do lago e do Oceano revela-se pelo movimento diário das marés, como regista Texeira, a partir do testemunho dos habitantes locais. As tempestades que atormentam os mares agitam e alteram as ondas do lago, que muitas vezes presenteiam com destroços de barcos, arremessados através de aberturas subterrâneas, e aos habitantes [presenteiam] com espanto.»

J. Caramuel Lobkowitz, Philippus prudens Caroli V. Imp. Filius Lusitaniae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitimus rex demonstratus, Antuerpia, 1639 (fol. 3r)

***


«
So that here, in the real living experience of living men, the prodigies related in old times of the inland Strello mountain in Portugal (near whose top there was said to be a lake in which the wrecks of ships floated up to the surface);»

Melville, Moby Dick, cap. 41

Para Kabul, e em força!

Visto nas notícias da RTP.

Um militar diz que as missões internacionais portuguesas na Bósnia, Afeganistão e Kosovo são o principal factor de atracção para recrutamento de voluntários. E de facto é difícil encontrar actividade mais estimulante para a juventude portuguesa do que perseguir taliban nas montanhas afegãs. Já sem falar dos banhos de urânio empobrecido nos Balcãs.

quinta-feira, outubro 22, 2009

Quietude


«Cuando cesaron de patearlo permanecieron unos segundos sumidos en la quietud más extraña de sus vidas. Era como si, por fin, hubieran hecho el ménage à trois con el que tanto habían fantasiado.

Pelletier se sentía como si se hubiera corrido. Lo mismo, con algunas diferencias y matices, Espinoza. Norton, que los miraba sin verlos en medio de la oscuridad, parecía haber experimentado un orgasmo múltiple.»

Roberto Bolaño, 2666

segunda-feira, outubro 19, 2009

Vozes de burro não chegam ao Céu

O facto de ser ateu; o facto de, ao contrário da generalidade dos cristãos católicos, ter lido a Bíblia; o facto de em muitíssimas coisas estar em total e irreconciliável desacordo com o Cristianismo; tudo isto dá-me, espero, alguma autoridade para poder dizer que as afirmações do senhor Saramago sobre a Bíblia revelam uma de três coisas (ou mesmo todas as três):
  1. que ensandeceu, e além disso nunca leu de facto a Bíblia (ou se leu, leu mal), limitando-se a fazer eco das cavalidades dos ateus radicais;
  2. que ensandeceu, e procura fazer polémica com intenção de publicidade gratuita, mediante ataques alarves a uma instituição que, com todos os seus defeitos, merece o respeito de qualquer pessoa com um mínimo de boa formação cívica;
  3. que ensandeceu, simplesmente.

É que se é certo que, sobretudo o Antigo Testamento, tem de facto partes de uma violência chocante aos olhos da nossa cultura greco-romana fortemente temperada pela judaico-cristã, a verdade é que não se pode tomar a parte pelo todo, nem se pode, sobretudo, desligá-las do seu contexto. Longe de ser um "manual de maus costumes", é na verdade um dos pilares da nossa cultura e da nossa civilização, para o bem e para o mal.

Não reconhecer isto revela, no mínimo, ignorância. Embora no caso presente me pareça que outras razões bem mais lamentáveis - é que a ignorância não é um defeito, pode mesmo ser a maior das qualidades, quando a reconhecemos e a tentamos colmatar. Já a provocação e a afronta com efeitos publicitários, essas parecem-me sem remédio.

Quanto à Igreja, instituição à qual não tenho, repito, qualquer ligação e pela qual, insisto, não me move nenhuma simpatia especial (nem antipatia), espero que não morda o anzol insidiosamente lançado pelo senhor Saramago, e que leve à letra o conhecido dito que dá título a este texto.


acrescento: a comunidade judaica já reagiu. Como a gente costuma dizer nas discussões geek (sim, eu sou um bocadinho, e assumo-o), "please, don't feed the troll".

sábado, outubro 03, 2009

Garanhão

A vizinha de baixo cumprimentou-me com um sorriso malandro. Talvez lhe devesse ter dito que é só a nova máquina de lavar roupa que faz demasiado barulho ao bater no armário durante a centrifugação.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Contas


Mandei vir da Amazon.co.uk a tradução inglesa do primeiro volume da trilogia do Stieg Larsson (espero não me arrepender...)*. O total da encomenda foi £9,42. Ou seja, em moeda de gente, 10,34€, mais coisa menos coisa. Já incluindo despesas de envio, porque o livro mesmo só custa £4,19 (4,60€). A tradução portuguesa custa, na Wook, 17,55€. Ainda sem os portes de envio.

Portanto, a tradução portuguesa custa o quádruplo da tradução inglesa. Eu acredito que haja uma razão aceitável para isto, mas enquanto não souber qual é, continuarei a só comprar em Portugal livros de autores portugueses.
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* arrependi-me.

quarta-feira, setembro 30, 2009

A porta da rua é serventia da casa


Depois da figura patética que fez ontem, que mais pareceu uma fuga para a frente depois de apanhado em falso, depois de não ter explicado nada, depois de ter metido as mãos pelos pés, depois de ter explicitamente declarado guerra ao partido do governo, o sr. Cavaco só tem duas saídas:

1. não nomear Sócrates, já que pelos vistos não tem confiança no partido que venceu as eleições, o que configuraria na prática uma espécie de golpe de estado;

2. demitir-se, para não ter de indigitar o líder de um partido em quem não tem confiança e a quem declarou ontem guerra.

Qualquer terceira via é politicamente inaceitável. Mas claro, parece óbvio que vai mesmo escolher a terceira via: assobiar para o ar, de preferência a comer bolo-rei de boca aberta. Ao governo agora só resta ajudar o sr. Cavaco a acabar o seu mandato dignamente. O que se afigura complicaco.

domingo, setembro 27, 2009

A vitória

Há 3 grandes vencedores nestas eleições, um assim-assim e um derrotado claro.

  1. O PS venceu. Perdeu a maioria absoluta, como era previsível há muito tempo. No entanto, convém recordar que vinha de uma derrota expressiva nas Europeias, e que as sondagens ainda há pouco mais de 15 dias davam um empate com o PSD, que vinha, aparentemente, numa dinâmica de vitória. Havia ainda a crise internacional e nacional, o desemprego a subir. Em Junho houve quem imprudentemente augurasse o fim do "socratismo". Sócrates, goste-se dele ou não, mostrou que está muito longe de morto politicamente, e com uma campanha inteligente e muitíssimo bem gizada (o cartaz dos últimos dias é um prodígio de marketing político), desmentindo ao mesmo tempo todos os que acham que as campanhas nada decidem. Partia numa situação difícil, foi dado como derrotado até a poucas semanas das eleições, mas fez uma campanha notável, e estou convencido de que com mais 1 ou 2 semanas ainda chegava à maioria. Finalmente, o facto de nem o BE nem a CDU poderem fazer, separados, maioria com o PS, é um alívio para Sócrates, que assim deixa de se sentir obrigado a entendimentos à esquerda (o que eu lamento).
  2. O CDS obteve um resultado histórico, capitalizando os votos da direita e certamente de parte dos eleitores PS em 2005. Fez uma campanha quase tão boa como o PS, e, com uma mestria ousada, conseguiu que o seu líder fosse o último a falar, com um discurso que, conjugado com esse tremendo pormenor, lhe dá de feito um lugar no pódio destas eleições.
  3. O BE é o terceiro vencedor, embora com resultado aquém do que se esperava. Aumenta muito a sua representação parlamentar, descola da CDU, e assume-se definitivamente como a grande alternativa de esquerda ao PS. Ganha ainda um tremendo trunfo: se as contas não me falham, não consegue formar maioria com o PS. Assim pode sem problemas continuar a fazer do PS, e não da direita, o seu principal inimigo. De resto nem uma palavra se ouviu de congratulação pera estrondosa derrota do PSD, o que é pena.
  4. A CDU fica assim-assim. Não ganha nada, embora o seu discurso diga o contrário, numa divertida reedição do saudoso ministro de Saddam no dia da tomada do Bagdade. Tal como o BE, não consegue formar maioria com o PS, ficando de mãos livres para continuar a sua luta fratricida contra o PS, ignorando a direita.
  5. O PSD é o grande derrotado, talvez a mais significativa derrota da sua história. Obtém um resultado semelhante ao de 2005, mas com uma enorme diferença: em 2005 partia fragilizado por um governo impopular, em 2009 era o partido que teoricamente poderia tirar partido da impopularida do governo PS. Vinha de uma vitória nas Europeias, partia lado a lado nas sondagens a 15 dias das eleições. Mas fez uma campanha vazia, sem apresentar ideias nem propostas. Sobrestimou o povão tuga, e achou que já éramos suficientemente civilizadosa para passar sem espectáculo de campanha, sem comícios, sem brindes, sem espalhafato: apresentou uma imagem tristonha, quase fúnebre. Um erro crasso, quando do outro lado estava um mestre nestas artes. Poderia ter contrabalançado com as ideias, mas apresentou um programa vago, e centrou a sua campanha no discurso tipo velho-do-restelo contra o TGV, numa primeira fase, e tipo Quixote contra uma delirante asfixia democrática. Assim, partindo da "pole position", deixou-se ficar para trás, estagnou em termos de votos, não parece ter capitalizado praticamente nenhum voto de descontentamento, que se distribuiu entre o BE e o CDS.
O meu voto, como toda a gente sabe, foi para o PS. Esta vitória soube-me, como estou convencido que a quase todos os socialistas, muito melhor do que a de 2005, que era fácil e previsível. Esta foi difícil, e, tendo em conta as circunstâncias, nada evidente à partida. Espero agora que a esquerda (PS-BE-CDU) se entenda, e que o PS não caia na asneira histórica de se aliar ao CDS, o que me faria deixar de votar no partido.

sábado, setembro 19, 2009

Alegre

A participação de Manuel Alegra no comício desta noite do PS é significativa por várias razões. A principal é que mostra uma das maiores diferenças entre o PS e o PSD: enquanto a D. Manuela, com a ajuda do Sr. Cavaco, vão falando de asfixias democráticas e de "receios" e "apreensões", ao mesmo tempo que se saneiam das suas listas, correndo com os opositores, o PS do "ditador" Sócrates integra opositores internos nas listas (Seguro, por exemplo, n.º 1 por Braga, João Soares, no Algarve) e chama para o seu lado o maior de todos os opositores, Manuel Alegre (que infelizmente recusou estar nas listas de deputados). É a diferença entre um partido que sempre respeitou a pluralidade de opiniões e outro que tem por tradição calar as bocas discordantes - veja-se a expulsão de membros do partido em 1986, perpetrada pelo sr. Cavaco, depois de terem tido a ousadia de não apoiar o candidato presidencial do partido.

A outra grande razão é que, sendo Manuel Alegre o porta-voz oficioso da ala mais à esquerda do partido, e sendo, sobretudo uma figura simpática ao BE e ao PCP, pode ser um trunfo decisivo para a conquista de votos à esquerda, sobretudo entre os indecisos que, sendo da área do PS, estão descontentes e mais virados para um voto de protesto no BE. Porque é aí que se vai decidir a vitória do PS, não, como habitualmente, ao centro. O centro já optou há muito pelo PS, como se vê nas modestas intenções de voto no PSD, pouco acima da catástrofe de 2005. Os votos que o PS perdeu não foram para o PSD, foram para o PCP e para o BE. E é aqui que Alegre joga uma cartada decisiva. Não tirando seguros do BE e ao PCP, que não vão em cantigas e não se importam nada (pelo contrário) com uma vitória da direita, mas apelando aos indecisos de esquerda, os que não sabem ainda onde votar, só sabem que não querem a direita outra vez no governo, e têm pesadelos com a perspectiva de uma santíssima trindade com Cavaco, Manuela e Portas. É nesses que está a solução e a decisão destas eleições.

quinta-feira, setembro 17, 2009

Porém?!

São muitos os motivos que me levam a recusar-me a ler obras inglesas, francesas ou espanholas em tradução. O primeiro de todos é o da fruição estética; o que perco na inteligibilidade, ganho no contacto com a sonoridade original, a escolha das palavras, a organização do discurso. No fim de contas, ganho mais do que perco. O outro grande motivo é o económico: as traduções portuguesas têm preços obscenos, por vezes o triplo, às vezes o quádruplo do original - e não, não se trata de "pagar o tradutor": mesmo as traduções inglesas de autores de outras línguas são geralmente pelo menos metade do preço das portuguesas.

Vejamos um exemplo. Comprei há algum tempo tradução da Moby Dick, da Relógio d'Água, por recear o inglês um pouco retorcido do original. Ainda assim, arrisquei lê-la na edição inglesa da Penguin Classics. Apesar da dificuldade, não me arrependi. Mas como sou muito curioso, decidi ir ver como resolviam os tradutores da Relógio d'Água algumas situações. Por exemplo, a peculiar linguagem arcaizante dos quakers. Por exemplo, no capítulo 18:

«"Young man," said Bildad sternly, "thou art skylarking with me - explain thyself, thou young Hittite. What church dost thee mean? answer me."»
Achei sempre, antes de verificar o português, que a única opção aceitável era usar a 2.ª pessoa do plural, desrespeitando a gramática do inglês, mas conservando o sabor arcaico. Qualquer outra opção apagaria por completo a intencionalidade do original. Mas o que a mim parecia lógico, aos tradutores da Relógio d'Água pareceu retorcido, e, passando uma esponja sobre o original, verteram desta maneira no mínimo sensaborona:

« - Rapaz - observou Bildad severamente - , estás a divertir-te à minha custa. Explica-te porém, hitita. A que igreja te referes, responde.»

E se ignorar a preciosa musicalidade do texto é já grave (como entenderá o leitor a alusão explícita do narrador à peculiaridade da fala quaker, se na sua tradução não há qualquer peculiaridade?), que dizer daquele "porém" ali metido a martelo? Os tradutores claramente tomaram o pronome pessoal thou pela concessiva though. Lamentável.

Estranha, finalmente, também é a opção de representar o sinal de Queequeg (que dá o nome ao capítulo) não por uma forma redonda, como diz explicitamente o texto (e representa a edição da Penguin), mas por uma cruz. Depois há pormenores menos significativos, como a omissão da versão hebraica do nome "baleia", no início, ou a opção por não numerar os capítulos. Ainda assim, uma tradução muito superior à inenarrável e inapresentável versão publicada numa colecção do Público há uns anos, que entre gralhas e erros omitia todo o capítulo introdutório.

Por fim, o motivo financeiro. A minha edição da Penguin custa, na Amazon, 11,20$, o que dá pouco mais de 7€. A tradução da Relógio d'Água custa, na FNAC, 24€. Mais do triplo.

E não, não se pode justificar com o pagamento ao tradutor. Vejamos outro exemplo. O fabuloso "O meu nome é Vermelho", do Pamuk, custa na tradução (indirecta) da Presença, 22,50€ (via Wook). A tradução inglesa, directa, por onde o li custa, na Amazon.co.uk, 4,11£, ou seja cerca de 4,50€ - cerca de 1/5 da tradução portuguesa, e com a vantagem de ser feita sobre o original. Também o tradutor da edição inglesa terá certamente recebido pagamento.

É por estas e outras que continuarei a ler em inglês, mesmo correndo o risco de não entender algumas palavras. Antes isso do que apanhar com algum "porém" inadvertido.

sábado, setembro 12, 2009

Um pouco de sabedoria islâmica

عن أبي هُريرة: أن رجلا قال للنبي صلى الله عليه وسلم أوصني، قال:
لا تَغْضَبْ
فردد مرار، قال:
لا تَغْضَبْ

De Abû Hurayra. Disse um homem ao Profeta (que Deus o abençoe e lhe paz) que o aconselhasse. [O Profeta] disse:
- não te irrites!
E ele, de novo:
- não te irrites!

terça-feira, setembro 08, 2009

Política de verdade . 1

Asfixia democrática . 1

Linux r0x

Quando me dizem que Linux é muito difícil, eu tenho sempre muita vontade de rir, porque não só se instala mais facilmente do que o Windows como é muito mais intuitivo e eficiente. De outra maneira seria impossível um analfabeto informático como eu usá-lo vai para mais de 10 anos. Agora a minha mãe, já nos 60 e tais, também se converteu. Dei-lhe o meu velho portátil, que tem Linux e Windows, para substituir o dela, relíquia só com Linux, que lhe passei para a mão há alguns meses, depois de o dela pifar ("nunca me vou habituar a isto do Linux"). Perguntei-lhe se queria que configurasse este novo portátil para entrar automaticamente no Windows. Respondeu que não, que estava afeiçoada e habituada ao Linux, que lhe prantasse mas é o Gnome à maneira (um dos muitos ambientes gráficos do Linux), e mainada.

domingo, setembro 06, 2009

Coligação de Direita Unitária


Quando no debate de ontem Jerónimo de Sousa hesitou e acabou por não responder cabalmente à pergunta "prefere que ganhe o PS ou o PSD", voltou a confirmar uma ideia que é óbvia: CDU (e BE) estão mais interessados em derrotar o seu inimigo principal, o PS, do que a direita. Ao recusarem-se ambos a acordos pós-eleitorais, estão ainda a dizer claramente que não querem ser governo. Deviam, pois, deixar de ter autoridade moral para dizer que o PS "tem políticas de direita": quando se lhes põe a hipótese de participarem num governo de esquerda com o PS, recusam. O que não admira: o seu objectivo primeiro é, e será sempre, derrotar o PS. E só depois derrotar a direita.

Ainda e ssempre o accordo ortographico

Na Pública da semana passada, Simone de Oliveira diz que não concorda com o acordo ortográfico, e que vai continuar a *falar* como sempre falou. O que é como se alguém dissesse que não gosta de couves de bruxelas, pois prefere Beethoven.

Se se tivesse dado ao trabalho de se informar um bocadinho, a Simone saberia que é precisamente o inverso: o novo acordo procura aproximar mais a escrita da fala, eliminando letras que só servem para enfeitar. E não me venham com a etimologia, que se assim fosse então teríamos de escrever "instrucção", já sem falar de consoantes dobradas, "y" e quejandos: o "c" de "acção" faz tanta falta como o "p" de "esculptura". E não, não, não abre vogal nenhuma, não só porque isso seria um absurdo, do ponto de vista da nossa tradição ortográfica, mas sobretudo porque o que não falta na nossa escrita são pretónicas abertas sem necessidade de penduricalhos obsoletos, como "inflação", "corar", "pregador", "pegada", "colação", etc. - um enorme etc. Por outro lado, não são poucas as palavras com penduricalho que não só não se pronuncia, como não abre vogal nenhuma, como "actuar" e "actriz", só para mencionar duas palavras de utilização frequente. E não, não há nenhuma incongruência na alteração de radical de palavras da mesma família, como já ouvi argumentar, a propósito do par "Egito"/"Egípcio": já acontece em muitas palavras, como o par "esculpir" / "escultura" (que já se escreveu "esculptura", e ninguém morreu por cair o "p").

E não se pense que sou contra a conservação de vestígios etimológicos na escrita: pelo contrário, nem que seja pela minha formação, sou um adepto incondicional da escrita etimológica. O que acho é que das duas uma: ou se opta por uma escrita etimológica, à maneira francesa ou grega, ou se avança para uma escrita fonética, à maneira italiana. Este nem carne nem peixe que é a nossa ortografia é que não.

A afirmação da cantante Simone revela, portanto, que, salvo raras e honrosas exceções, os ataques ao acordo ortográfico são geralmente desprovidos de qualquer sentido, pois misturam duas coisas que pouco têm que ver: a língua, com a sua gramática, e a escrita, que não passa de uma convenção extralinguística, mais política do que outra coisa.

A oposição ao acordo, com notáveis e poucas exceções, faz-se valer mais da emoção do que da razão: é-se contra o acordo porque sim, porque não se gosta. Mesmo quando se trata de pessoas tão cultas e dotadas de inteligência superior, como o Eduardo Lourenço, que afirma sem corar que vai continuar a escrever como foi alfabetizado. O que quer dizer que, tendo em conta a sua idade e a altura em que foi alfabetizado, continuará a escrever "êle", "flôr", "mãi", "quasi", e outras coisas do mesmo género.

N.B.: texto escrito de acordo com o acordo, tendo sido necessário mudar apenas uma palavra.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Um OVNI na Restauração


«Con vna notable obseruacion Astrologica se puede tambien confirmar la Corona deste nuebo Rey, interpretandola en su fauor haciendo juizio del globo de fuego resplandeciente con vna larga cola, o lança, que el año de 1631. se leuantò de la parte Occidental del mar Oceano, y corriẽdo sobre la tierra el Sabado seis de Nouiẽbre quasi al anochecer parò sobre la corona de vna imagen de piedra de elRey Don Alfonso Henriquez, que los religiosos de Alcobaça auiam colocado en vn nicho por memoria de auer sido fundador, y dotador de aquel Real Combento. Y aunque el Doctor Frai Antonio Blandon discursò con acertado juizio sobre este prodigio, fue acomodãdole a su intẽto, deuiendo entenderse, & interpretarse de la aclamacion delRey Don Iuan acreditada con milagros, y prodigios, que la confirman.

Es el Cometa en la diffinicion de Aristoteles (a que siguen todos los modernos) vna junta, o congregacion de exhalaciones viscosas leuantadas de la tierra por fuerça de las estrellas asta la suprema region del aire, adonde se inflaman, y encienden; y a esta inflamacion llaman Cometa. Y aunque a este globo com cola de fuego, no se pueda aplicar nombre semejante, porque no se leuantò asta la media, ni suprema region del aire, no se puede dudar de que engẽdrado de las mismas exhalaciones, q́ los demas Cometas acabãdo cõ tãta velocidad por falta de materia. Y resueluẽ todos los Astrologos, q́ para ser buena la significacion de semejantes Cometas, ande parecer muy resplandecientes, y de la parte meridional, como esta grande exhalacion.»

El principe encubierto, manifestado en quatro discursos politicos, exclamados al Rey Don Phelippe IIII. de Castilla... escrivelos Lucindo Lusitano... - Em Lisboa : na officina de Domingos Lopes da Rosa : a custa de Lourenço de Queirós livreiro do Estado de Bragança, 1642
Fólios 30r-30v

quinta-feira, setembro 03, 2009

Não era bem que ficasse reservado


"A moderação foy tal, como se pòde arguir, de que animos tão justamente indignados, & irritados, se abstiverão de violencias em acto, que permitia as mayores liberdades. A nenhum Castelhano se tocou, esquecendose o nobre, & altivo intẽto dos animos, dos aggravos, que em differentes occasioẽs receberão nossos lugares desta gente; guardarãose os decoros às pessoas, que aqui estavão por elRey de Castella, conforme ao que se devia à condição de cada hũa. Ninguẽ tratou de vingarse de seu inimigo, cousa facil em semelhantes occasioẽs, antes muytos, que o erão, ficarão reconciliados. Sò pagou com a vida o Vasconcellos, que por traydor à Patria, não era bem, que ficasse reservado."

Manifesto do Reyno de Portugal. No qual se declara o direyto, as causas, & o modo, que teve para exemirse da obediencia del Rey de Castella, & tomar a voz do Serenissimo Dom Joam IV. do nome, & XVIII. entre os reys verdadeyros deste Reyno. Em Lisboa : por Paulo Craesbeeck, 1641
38r-38v

quarta-feira, setembro 02, 2009

Ora toma lá que é para aprenderes


«Num lugar da Beira se afirma que ouue hum homẽ, que ouuindo dizer numa cõuersação de amigos que na felice aclamação delRey nosso Senhor fizera o crucifixo da Sè o milagre, que a todos he notorio: disse que podia a caso a imagem do Senhor despregar o braço; & assim como acabou de dizer estas palauras cahio huma parede junto da qual estauão todos os da cõuersação, & sò a elle matou»

Gazeta em que se relatam as novas todas, que ouve nesta Corte, e que vieram de varias partes no mes de Nouembro de 1641.
Lisboa, 1641.
Fólio 2r.

Lucta de Gigantes

O esforço de editar os nossos grandes autores é sempre de louvar, sobretudo quando a tendência é deixá-los caídos no esquecimento, ao contrário das boas práticas de outros países - basta ir a Badajoz para ver a diferença (não nas lojas de caramelos, claro). Um dos grandes esquecidos tem sido Camilo Castelo Branco, um dos mais abundantes escritores da nossa literatura, mas também, paradoxalmente, um dos difíceis de se achar nas livrarias, com a notável excepção do Amor de Perdição, cânone escolar oblige. Por isso é meritória e digna de aplauso a iniciativa da Fronteira do Caos em editar esta Luta de Gigantes. Pedia-se, porém, era um bocadinho mais de cuidado na edição, com gralhas e, o que é um bocadinho mais aborrecido, muitos erros de leitura, devidos certamente a desconhecimento dos hábitos tipográficos do século XIX, mas que um bom trabalho de edição teria detectado. Eu que sou muito embirrante com estas coisas fico um bocadinho aborrecido com a falta de acentos, ou com o estropear de nomes como o do Pedro Baeça, que aqui passou a chamar-se Pedro Bacça. Não era flor que se cheirasse, a gente já sabe, mas não lhe bastou ter sido executado por traição em 1641, tem de ter também o nome degolado?

terça-feira, setembro 01, 2009

Ó pai, não se amofine, ele não é ele, é ela

«A ideia de que existe uma fronteira bem definida entre um homem e uma mulher acabou por ser abandonada pelos organismos internacionais de desporto, com o fim das averiguações do sexo obrigatórias - primeiro pela IAAF, em 1992, depois pelo COI em 1999. "Os geneticistas mostraram que vários defeitos genéticos na síntese e reconhecimento das hormonas podem resultar num indivíduo que anatomicamente é XY e fisiologicamente é uma mulher. Rotular estas mulheres como 'homens' causou-lhes danos irreparáveis", reconhece-se no manual médico da IAAF, no capítulo dedicado aos assuntos especiais das atletas femininas. »
in Público, 30 de Agosto de 2009

Há dias o Público trazia uma reportagem, a propósito da Caster Semenya, que dizia que não basta a configuração dos genitais, nem mesmo os cromossomas, para definir o sexo de alguém. Dizia mesmo que essa definição é neste momento impossível. São excelentes notícias para quem não consegue assumir a sua homossexualidade. Pode sempre levar o/a parceiro/a a conhecer os pais, e dizer "não, por favor, não se deixem enganar pelas aparências".

sexta-feira, agosto 28, 2009

quarta-feira, agosto 26, 2009

Das ralações de D. Sebastião

[Os que tenham a desdita de não saber Latim não desesperem: a tradução está lá em baixo.]

«Post Sebastiani pulchram, & generosam mortem, quem hodie non pauci somniant superstitem, & regnaturum; plurimi in variis mundi locis conturbauerunt Lusitanorum animos nomine mentito Sebastiani. Inter reliquos, celebrior Madrigalensis quispiam; qui, postea conuictus, condemnatur. Regi defuncto erat simillimus faciei constitutione, & membrorum dispositione organica; prae se ferebat tamen aetatem maiorem quam deberet, si fuisset reuera Sebastianus. Species vultus fracta quodammodo apparebat: hoc populus attribuebat laboribus, sed non aetati. Vere fefellit plurimos; quia Sebastiani Confessario (hic enim sententiae vltimae rigori subiacuit) instruente, secretissima arcana Regni percallebat, & omnes eius actiones simia ignobilis imitabatur. Examinatus de rebus minutissimis, quas Philippus Prudens cum Sebastiano egerat Guadalippi, ostendit se pollere memoria felicissima: addebat circumstantias quarum Philippus immemor; sed, examine adhibito, repertae verae. Ceterum ab aliquibus Madrigaliae ciuitatis incolis tandem cognitus, confessus est, se ambitione regnandi ductum acquieuisse instructioni Regii Confessarii, & Sebastiani difficilem vere personam, sed tragice, simulauisse. Instructor capitur; qui aperte exposuit, qua inficiebatur, inuidiam atque maleuolentiam, non solum in Philippus Prudentem, sed etiam in omnes Castellanos. Bifariam erat proditor in hoc facinore. Volebat primo turbare Lusitaniam, & eliminare, imo delere Hispanos; secundo, Antonium accersire, vt, fictione detecta, iterato discrimine clauum teneret Portugalliae.»

Juan Caramuel Lobkowitz
Philippus prudens Caroli V. Imp. Filius Lusitaniae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitimus rex demonstratus
Livro I, p. 77.
Edição de 1639.


Quem é como quem diz, em linguagem:

«Após a honrosa e generosa morte de Sebastião, o qual hoje não poucos sonham que vive e há-de reinar, muitos, em várias partes do mundo, agitaram os espíritos dos portugueses, com o falso nome de Sebastião. Entre outros, o mais conhecido foi um tal de Madrigalense, que, mais tarde desmascarado, é condenado. Era muito parecido com o falecido Rei, na constituição da cara e na disposição dos membros. Contra si tinha, no entanto, a idade, maior do que deveria, se de facto fosse Sebastião. A cara tinha um aspecto de certa maneira enrugado. O povo atribuía isso às ralações, não à idade. A verdade é que enganou muitos, pois instruindo-o confessor de Sebastião (esse, na verdade, foi submetido ao rigor da sentença capital), sabia muito bem os mais secretos arcanos do Reino, e, ignóbil macaco, imitava todas as suas acções. Examinado sobre coisas muito miúdas que Filipe o Prudente tratara com Sebastião em Guadalupe, mostrou-se dotado de uma memória riquíssima: acrescentava circunstâncias das quais Filipe não se recordava, mas que, tendo sido examinadas, se acharam verdadeiras. Porém, tendo sido por fim reconhecido por alguns habitantes da cidade do Madrigal, confessou que havia consentido na instrução do confessor régio levado pela ambição de reinar, e que imitara verdadeira mas tragicamente a difícil pessoa de Sebastião. O que o instruiu foi preso. Este revelou abertamente o ódio e a malevolência de que estava impregnado, não só contra Filipe o Prudente, mas ainda contra todos os castelhanos. Era duplamente traidor: queria, em primeiro lugar agitar Portugal, e eliminar – mais ainda: destruir os espanhóis; e, em segundo lugar, chamar António, para, revelada a ficção, com renovada contenda tomar o leme de Portugal.»

Pagamento Especial por Coerência

Diz que o programa do PSD prevê o fim do Pagamento Especial por Conta. Resta saber porque raio a Manuel não acabou com ele quando era Ministra das Finanças, se já então o achava injusto (a não ser que tenha mudado de ideias radicalmente). De qualquer forma, esta e outras promessas de reduzir impostos devem ser tão verdadeiras como o "choque fiscal" de 2002, que, apesar de a situação encontrada ser melhor do que a propalada na campanha, ficou na gaveta, assistindo-se pelo contrário a uma subida de impostos.

terça-feira, agosto 25, 2009

Figo


O Figo vota PS. Eu sempre gostei deste rapaz.

Da coerência

O ocupante do Palácio de Belém promulgou a lei que alarga a escolaridade obrigatória até aos 12.º ano. A esquerda votou a lei, como seria desejável. A direita absteve-se. Podia ser apenas mais um sintoma de que a direita está pouco interessada no melhoramento do país, se isso significar melhorar o acesso à educação e à cultura. Mas é mais do que isso: é sinal de incoerência e, como é costume, de fazer na oposição o oposto que fez no governo. É que o governo PSD-CDS liderado pelo Durão Barroso, e de que Manuela Ferreira Leite era o n.º 2, tinha anunciado com tremenda pompa e circunstância que ia alargar a escolaridade até ao 12.º ano - o que, pelos vistos, era mentira. No entanto agora, poucos anos depois, abstêm-se os dois partidos. Seria motivo para dizer que há mistérios insondáveis, não fosse o PSD há muito nos ter habituado a dizer uma coisa hoje e o seu oposto amanhã, desde que sirva os seus interesses eleitorais mais imediatos.

sábado, agosto 22, 2009

Never mind

Dantes quando eu entrava no meu quarto havia em cima da mesa de cabeceira um Joyce, um Dostoiévski, eu sei lá, um Camilo, um Eça, um Gógol, um Borges. Agora mesmo, ao deitar-me, entornei como habitualmente a mão em cima da dita mesa de cabeceira, para pescar o Lawrence ou o Camilo (ando a namoriscar os dois), e em vez disso saem-me estes, que o Manuel tratou de lá plantar esta tarde, para eu lhos ler (já tentei Joyce e até D. Francisco Manuel de Melo, mas ele não se comoveu).

O mais preocupante nisto tudo é que saí da cama para vir até aqui escrever isto.

sexta-feira, agosto 21, 2009

Da banha da cobra


Ministra de Estado e das Finanças do governo PSD/CDS (2002-2004), Manuela Ferreira Leite vem agora dizer que se for governo não só não aumenta impostos, como até os reduz. Para quem não tem memória curta, trata-se da mesma senhora que era responsável pelas Finanças de um governo que assim que entrou em funções se pôs a aumentar o IVA, depois de prometer um famoso "choque fiscal".

É certo que alegaram que a situação que encontraram os obrigou a mudar de ideias. E tinham razão: nos cartazes de propaganda afirmavam que o défice era de 5% (vá-se lá saber baseados em quê...), e o que encontraram era de 4,5%. Nunca ficou foi muito bem explicado como é que iam baixar impostos com um alegado défice de 5%, mas ao encontrarem um de 4,5% tiveram de os aumentar.

Portanto das duas uma: ou o PSD e a sua líder virgem ofendida estão de novo a mentir e a apostar na memória curta, ou então decidiram que isso de controlar o défice já não é prioritário. De outra maneira não estou bem a ver qual é o objctivo desta promessa. A não ser que a MFL pretenda, se for governo, fazer o mesmo que fez quando foi governo pela última vez: aumentar impostos e vender o património do Estado, para no fim o défice ficar muito mais elevado do que quando ela tomou posse.

O Príncipe

«Es prudencia (aconsejada ya del Espiritosanto) recelar tal vez, del hijo, y mirar al subdito; porque el Principe, ó es bueno, ó malo, ó no es malo, ni bueno: si es bueno, es formidable a los malos, y de esso aborrecido: si es malo, es enojoso a los buenos, y por esso desamado: si ni bueno ni malo, ni es temido, ni es querido, de malos, ni buenos.»


Dezengaños offrecidos al Catolico Principe D. Phelippe el IV. Rey de Castilla, en razon del intento injusto con que sus Ministros procuran en Roma impedir applauzos al recebimiento de la embaxada del Serenissimo Principe D. Juan el IV natural, y ligitimo Rey de Portugal dedicados, y consagrados a la Alteza Serenissima del Señor D. Theodozio Principe Heredero de las Coronas de Portugal, Algarves, y sus conquistas Señor nuestro / por Juan Monis de Carvalho Abbad de la Iglezia Parrochial de Revoredo, Commissario del S. Officio de la Inquisicion, Jues commissario de la S. Cruzada, y Vicario General en la comarca de Valencia, Arçobispado de Braga.
Antuérpia, 1642.

quinta-feira, agosto 20, 2009

A Idade de Ouro

«E deuese fazer mençaõ, do que se escreue na chronica de S. Francisco, que o santo hauia profetizado, q hauia de hauer separaçam para sempre das Coroas de Portugal, & Castella, & de outra profecia de S. Frey Egidio da Ordem de S. Domingos, que diz o seguinte. Portugal priuado de seus Reys gemerà por algũs tempos, mas sendolhe Deus propicio, serà restaurádo, quando menos se espere, Africa serà vencida, cahirá o Imperio Othomano, a Terra santa se recuperará, renouarsehá a idade de ouro, & auera paz uniuersal.»

Manifesto do Reyno de Portugal, presẽtado a Santidade de Urbano VIII. N. S. pelas tres nações, portuguesa, francesa, catalan em que se mostra o direito com que el Rey Dom João IIII. Nosso Senhor possue seus Reynos, & Senhorios de Portugal, e as rezões, que ha para se receber por seu Embayxador o Illustrissimo Bispo de Lamego: dividido em doze demonstraçoẽs: traduzido de italiano em portuguez, Lisboa, 1643
(pp. 28)

O fundamento


«Com toda a verdade se conta que elRey de Portugal D. Affonso Henriquez no Campo de Ourique, estãdo para dar a batalha a innumerauel multidam de Mouros, hum Hermitam insigne em santidade, como precursor do proximo aparecimento de Cristo nosso senhor veyo ter com elle, & lhe disse estas palauras. Sois amado de Deus, porque sobre vòs tem posto os seus olhos de misericordia, & depois de vós em vossa descendencia, atè a decima sexta geraçam, na qual se adelgaçarà a descendencia, mas a esta adelgaçada voltarà os seus olhos, & verà.
[...]
Computandose bem a geraçam delRey Affonso Henriquez serà manifesto a todos, como esta profecia falaua da moderna restituiçam delRey Dom Ioam o IV se o mesmo Rey D. Affonso se incluir na primeira geraçam, em elRey D. Sebastiam se acha a descendencia adelgaçada, & se começa de seu filho elRey dom Sancho, quem negarà que ficou atenuadissima em elRey Dom Henrique, com que, ou na pessoa delRey D. Sebastiam, ou na delRey D. Henrique ficou a descendencia atenuada. E somente na restituiçam delRey Dom Ioam o IV se acha que Deus nosso senhor voltou os olhos, & vio, & constituio o nouo fundamento para a firmeza perpetua do Imperio Portugues.»

Manifesto do Reyno de Portugal, presẽtado a Santidade de Urbano VIII. N. S. pelas tres nações, portuguesa, francesa, catalan em que se mostra o direito com que el Rey Dom João IIII. Nosso Senhor possue seus Reynos, & Senhorios de Portugal, e as rezões, que ha para se receber por seu Embayxador o Illustrissimo Bispo de Lamego: dividido em doze demonstraçoẽs: traduzido de italiano em portuguez, Lisboa, 1643
(pp. 26-27)

quarta-feira, agosto 19, 2009

Repugnância


«Mas elRey Phelippe Principe Catolico, prudente, & riquissimo, mal aconselhado de algũs, & impaciente de toda a detença, desprezando os rogos do reyno, & a persuaçam do Pontifice, por authoridade propria, com força, & com mão armada subio ao trono real de Portugal, porem com contradiçaõ, & repugnancia do reyno, que se queixaua de ser esbulhado de seu direito, & com lamentos da senhora dona Catherina, que humildemente pedia socorro ao cèo, que hoje alcançou em fauor de seu neto.»


Manifesto do Reyno de Portugal, presẽtado a Santidade de Urbano VIII. N. S. pelas tres nações, portuguesa, francesa, catalan em que se mostra o direito com que el Rey Dom João IIII. Nosso Senhor possue seus Reynos, & Senhorios de Portugal, e as rezões, que ha para se receber por seu Embayxador o Illustrissimo Bispo de Lamego: dividido em doze demonstraçoẽs: traduzido de italiano em portuguez, Lisboa, 1643
(p. 19)

domingo, agosto 16, 2009

Linux vs. Windows: Uma questão de rapidez (2)


As coisas melhoraram ligeiramente para o Windows, no que respeita a carregar o sistema, talvez fruto das actualizações, mas continua muito, muito abaixo do Linux, que melhorou também substancialmente.

A experiência foi feita recorrendo ao mesmo computador (portátil com processador Intel Core Duo a 2GHz, memória de 1G), com arranque duplo: Windows Vista, Linux (Ubuntu 9.04). O Windows tem uma instalação mínima, com poucos programas. O Linux está todo artilhado, pois é o que uso mesmo. Por enquanto apenas fiz 3 provas.
1. Arranque do sistema

  • Windows Vista: 52 segundos, até o indicador de actividade do disco parar.
  • Linux: 32 segundos, até o indicador de actividade do disco parar.
2. Encerrar o sistema
  • Windows Vista: 32 segundos
  • Linux: 11 segundos
3. Abrir o OpenOffice, mesmíssima versão, clicando no mesmíssimo documento
  • Windows Vista: 21 segundos
  • Linux: 10 segundos

Em relação ao teste do ano passado, o Windows melhora bastante o arranque, talvez por ter desinstalado algumas coisas, como anti-vírus. Mas o Linux melhorou muito, também. O Linux continua a demorar pouco mais de metade do tempo a abrir, portanto.

No que respeita ao encerramento, não há diferença em relação ao ano passado. O Linux continua a demorar 1/3 do tempo a desligar.

Abrir o mesmíssimo documento na mesmíssima versão do OpenOffice demora o dobro do tempo em Windows. No ano passado a experiência era feita abrindo o OOo pelo menu, e não clicando num documento, portanto não se pode estabelecer comparação.

Da burrice


Na casa da minha mãe, que, apesar de ser uma mulher formada e culta, vê a TVI, vejo nas alegadas notícias desse canal que "Tomar tem segredos com 2000 anos". Isto dizia em rodapé. Fiquei curioso e agucei o ouvido. O repórter repetia que "Tomar tem segredos com 2000 anos, já que no século XII os Templários...". Aqui eu parei de ouvir, porque a estupidez e a burrice põem-me doente. Que quem escreveu o texto seja um analfabeto que desconhece operações aritméticas básicas já é escandaloso. Que nem o repórter, nem o apresentador, nem quem introduziu o texto em rodapé se tivessem dado conta da da da do (estou à procura de uma palavra, não encontro nenhuma) de quem escreveu o texto original, isso então ultrapassa todos os limites.

sábado, agosto 15, 2009

A sibila


Ouvi o presidente Cavaco dizer que não se "prenuncia" sobre questões políticas em período pré-eleitoral. Ficamos, portanto, a saber que o presidente Cavaco não é vidente nem astrólogo.

Uma questão de higiene

Que fique desde já claro que sou ateu, e estou-me nas tintas para a maneira como os outros vivem e manifestam a sua religião, desde que não me prejudiquem. É a velha história de a minha liberdade terminar onde começa a do outro. Mais, não vejo mal nenhum em que mulheres muçulmanas usem se dor de livre vontade véus, burcas, o que bem lhes aprouver. De resto, das muçulmanas que conheço só duas usam véu, e fazem-no de livre vontade e por convicção (uma delas até é portuguesa).

Vem isto a propósito de uma notícia que vi ontem na televisão, enquanto bebia café. Era o caso de uma senhora muçulmana num país francófono (havia coisas em francês), que de um dia para o outro viu ser-lhe vedado o acesso a uma piscina, por usar fato de banho completo. Sem coragem para assumir as suas xeno e islamofobia, o director dizia que o fazia por questões de higiene.

Ora vamos lá ver se eu entendo isto. Segundo esse senhor, a utilização de um fato de banho que cobre na íntegra o corpo, com excepção da cara, e portanto impede o contacto de fluidos corporais (suor, por exemplo) e da pele com a água, viola as normas de higiene. Já a utilização de fatos de banho normais, que permitem o contacto de fluidos corporais e uma maior superfície de pele com a água, esses permitem uma utilização higiénica do espaço. Não estou a perceber.

Ora essa, não serve para nada

À medida que vou mergulhando na bibliografia sobre a Restauração, vou-me dando cada vez mais conta de que a historiografia actual desconhece em absoluto as fontes de que estou a trabalhar apenas uma parte (embora já ultrapasse as 500 páginas de texto editado). Essa convicção tenho-a quer pelo que está escrito, quer pela omissão da referência às fontes nas bibliografias apresentadas. Há uma ou outra excepção, que indica e refere um ou outro das largas centenas de documentos inéditos e aparentemente não lidos - e não me refiro apenas aos que estão nos arquivos do Vaticano.

Talvez por estarem em latim, língua que, como toda a gente sabe, não serve para nada, e não faz qualquer sentido nos curricula de História, pardon my latin.


quinta-feira, agosto 13, 2009

Quanto pior melhor

Juntamente com a França e a Alemanha, Portugal está no grupo dos países da Zona Euro que primeiro acabou com a recessão e reiniciou o crescimento económico, para consternação da oposição, que assim vê escapar um importante trunfo eleitoral. Consternação bem visível na fronha dos seus dirigentes, do CDS ao BE, que, com ar fúnebre, comentaram este importante facto. Resta saber se, tal como responsabilizaram o governo pela crise internacional (!), vão agora dar-lhe crédito por ter terminado a recessão (ainda não a crise, infelizmente).

terça-feira, agosto 11, 2009

Da preguiça

A mim, que sou fraco de entendimento, custa-me muito perceber o que leva uma pessoa de aspecto saudável e jovem a subir dois ou três andares de elevador; mas o que me deixa deveras perplexo é ver uma pessoa de aspecto saudável e jovem DESCER dois, três ou mais andares de elevador.

quinta-feira, agosto 06, 2009

À vontadinha

P6160012

Ontem levei, excepcionalmente, o carro para Lisboa (como não sou rico, e tenho algumas preocupações ambientais, vou sempre de autocarro), por motivos que não interessam para o caso. Ia estacionar em frente à FLUL, e olhei a ver se tinha alguma coisa de valor à vista. Por momentos achei que era arriscado deixar o "Ulysses" ali no porta-luvas, ao léu. Mas depois bati na testa e pensei que na FLUL a reacção mais normal a um livro, sobretudo se for bom, é mais de fuga do que de tentação para roubar. E fui-me embora descansado.

quarta-feira, agosto 05, 2009

Outra virgem ofendida

A propósito dos saneamentos políticos no PSD por ordem da sua presidente, não deixa de ser curioso que seja a José Sócrates que se apelida de arrogante e autoritário, apesar de ele manter nas suas listas os seus adversários, e até ter sondado Manuel Alegre (mesmo dando de barato que sabia que a resposta seria negativa).

Por outro lado, Manuela Ferreira Leite mostra de novo que é uma política exímia e implacável, como de resto já tinha dado provas quando foi Ministra de Estado e das Finanças e deixou o país no estado em que se sabe, no que respeita a contas públicas, graças a medidas autoritárias e altamente nocivas às classes baixas e médias. Uma política exímia e implacável, bem longe da cândida e ingénua imagem que inventou à última da hora, para aparecer aos de memória curta como uma senhora que não percebe nada destas coisas da política, a tal ponto que nem sabe falar (Pacheco Pereira dixit).